Professores da USP editam o “Pandectas”, de Justiniano

Maior obra jurídica do imperador bizantino é lançada pela primeira vez em língua portuguesa

 12/11/2018 - Publicado há 5 anos
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Parte restaurada das muralhas de Constantinopla, hoje Istambul, na Turquia – Foto: Bigdaddy1204/Wikimedia Commons.

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O imperador Justiniano, em mosaico na Basílica de São Vital, em Ravena, na Itália – Foto:Petar Milošević via Wikimedia Commons / Dominío público

O governo do imperador Justiniano (482-565), que comandou o chamado Império Romano do Oriente por 38 anos – desde 527 até sua morte –, foi marcado por grandes realizações e por iniciativas típicas de um déspota intransigente. Se, por um lado, abafou com mão de ferro revoltas como a de Nike, instituiu pesados impostos nas terras sob seu domínio, baniu o Talmude das sinagogas e, em 529, fechou a Academia de Platão, em Atenas, por outro lado, ele levou às maiores alturas a glória do Império Bizantino, com sede em Constantinopla – hoje Istambul, na Turquia –, expandiu o seu território por todo o Mediterrâneo e, na tentativa de preservar os costumes e tradições do outrora onipotente Império Romano dos césares, legou ao mundo um documento jurídico que está na base do direito civil das nações ocidentais: o Pandectas ou Digesto.

Esse documento é uma compilação do direito romano elaborada por uma comissão de 17 juristas instituída por Justiniano. Durante três anos, essa comissão analisou 2 mil livros, para deles extrair comentários de juristas romanos sobre direito civil – como os celebrados Ulpiano (150-223) e Paulo (180-235) –, feitos ao longo de 1.300 anos. O trabalho resultou em 50 livros na versão final, que foram reunidos sob o nome de Pandectas ou Digesto e promulgados por Justiniano no dia 16 de dezembro de 533. Em vigor por quase mil anos em Constantinopla – até a tomada da cidade pelos turcos, em 1453 –, essa obra influencia o direito ocidental até hoje. No Brasil, ela é a base de aproximadamente 4/5 do Código Civil, de 2002.

Manuscrito do Pandectas do século 6 – Foto: Reprodução

 

Edição francesa do Pandectas do século 18 – Foto: Reprodução

 

Primeira página da tradução do Conselheiro Vasconcellos – Foto: Reprodução

 

Pela primeira vez, a grande obra jurídica de Justiniano começa a ser acessível ao leitor de língua portuguesa. Os volumes I, II e III do Pandectas – que contêm as Constituições Preliminares e os livros 1 a 19 – foram publicados, respectivamente,  em agosto de 2017, novembro de 2017 e outubro de 2018 pela Editora YK, que prevê o lançamento dos volumes seguintes para os próximos anos. No total, serão publicados sete volumes, tal como concebido por Justiniano.

A publicação é coordenada por três professores da Faculdade de Direito da USP: Eduardo Silveira Marchi, Bernardo Queiroz de Moraes e Dárcio Martins Rodrigues. Já a tradução é de autoria de Manoel da Cunha Lopes e Vasconcellos, o Conselheiro Vasconcellos (1843-1920), formado em 1864 pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco – hoje ligada à USP -, que fez carreira como jurista e professor da Faculdade de Direito da Bahia, atualmente uma unidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador.

A história dessa tradução é curiosa. O Conselheiro Vasconcellos começou a trabalhar nela em 1896, quando ainda atuava em Salvador. No ano seguinte, ele se aposentou e se transferiu para Valença, também na Bahia, sua cidade natal, onde deu continuidade à versão do Pandectas em português. O manuscrito do nono e último volume da tradução está datado de 2 de junho de 1915 – quase 20 anos depois do início da tarefa..

Um antigo manuscrito do Pandectas – Foto: Reprodução
Fragmento do Pandectas do século 7 – Foto: Reprodução
Até hoje, o Pandectas teve 13 traduções integrais – Foto: Reprodução

Entretanto, a tradução do Conselheiro Vasconcellos se perdeu. “As últimas referências históricas ao manuscrito junto à Faculdade de Direito da Bahia são do final dos anos 50”, escreve o professor Eduardo Marchi na introdução da edição brasileira do Pandectas. “A partir daí, por mais de meio século, o manuscrito caiu em total e absoluto esquecimento.”

Somente no século 21 as páginas amareladas da tradução do Conselheiro Vasconcellos foram encontradas numa cafua – termo arcaico, ainda utilizado em Salvador, para se referir a uma sala subterrânea, escondida na faculdade e fechada há décadas. “Em uma manhã, bem cedo, entre maio e junho de 2011, chegaram à velha Faculdade de Direito em Salvador dois caminhões de lixo e reciclagem. Vinham carregar as quinquilharias deterioradas”, relata o professor Marchi. Os caminhões haviam sido contratados pelo administrador da faculdade, por ordem do diretor, professor Celso Castro. Quando os portões se abriram para a entrada dos caminhões, o diretor apareceu subitamente e interrompeu a ação. “Ele passara a noite pensativo e inquieto, preocupado com a providência que havia sido tomada no dia anterior pelo administrador.” O diretor dispensou os caminhões e entrou na cafua, logo tropeçando em papéis antigos, que incluíam a ata de fundação da faculdade, em 1891. “Pouco tempo depois, deslocada para a escola uma arquivista da UFBA, dra. Solenar do Nascimento, para justamente cuidar da cafua, a zelosa especialista foi então, pouco a pouco, encontrando manuscritos, documentos e outros papéis esquecidos.” Entre esses papéis estava a tradução do Pandectas feita pelo Conselheiro Vasconcellos, agora trazida à luz por iniciativa dos três professores da USP, que são especialistas em direito romano.

O Pandectas, de Justiniano, em língua portuguesa: no total, obra terá sete volumes – Foto: Reprodução

“Trata-se da única tradução integral do Digesto ou Pandectas de Justiniano até hoje realizada na América Latina, e também a única inteiramente composta por um único tradutor em todo o continente americano”, escreve Marchi. Até o trabalho do Conselheiro Vasconcellos, haviam sido feitas apenas 13 traduções integrais do Pandectas, para 12 línguas (inglês, espanhol, francês, italiano, alemão, holandês, russo, eslovaco, tcheco, japonês, mandarim e polonês), algumas delas coletivamente. Com essa obra, acrescenta Marchi, o Conselheiro Vasconcellos “alça-se ao panteão dos grandes juristas brasileiros filhos ilustres da Bahia, colocando-se ao lado de Teixeira de Freitas, o mais célebre jurisconsulto brasileiro do século 20, Rui Barbosa e Orlando Gomes”.

Digesto ou Pandectas, do imperador Justiniano, volumes I, II e III, tradução de Manoel da Cunha Lopes e Vasconcellos, Editora YK.

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Manual explica a obra do imperador bizantino

Além de ser um dos coordenadores da publicação no Brasil do Pandectas, de Justiniano, o professor da Faculdade de Direito da USP Bernardo Queiroz de Moraes também escreveu um Manual de Introdução ao Digesto, lançado em 2017 pela Editora YK. Com 620 páginas, a obra é uma apresentação completa do monumental documento produzido a mando do imperador bizantino.

Capa do Manual de Introdução ao Digesto, do professor da USP Bernardo Moraes – Foto: Reprodução

No início do livro, Moraes dá as características gerais do Pandectas, abordando a forma como ele foi elaborado, as instruções dadas pelo imperador, os métodos utilizados pela comissão de juristas que executou o projeto e as divisões internas do documento. Em seguida, oferece dados sobre os juristas citados no Pandectas e as obras de que foram extraídos os comentários. Longos capítulos destacam os manuscritos e as edições do Pandectas publicadas ao longo dos séculos. As traduções do documento também são tema de um extenso capítulo. Uma bibliografia, um dicionário com termos do Pandectas e uma cronologia relacionada ao direito romano também são publicados no livro de Moraes.

“A principal fonte do direito romano, o Digesto, precisa ser minimamente explicada diante da ausência, no País, de uma difundida tradição desse estudo”, justifica Moraes na introdução do seu Manual de Introdução ao Digesto. “A finalidade do presente manual é justamente facilitar o acesso a um material de estudo e pesquisa fundamental, tanto para o jurista (romanista ou civilista) quanto para aquele simplesmente interessado em conhecer melhor a cultura jurídica romana que influencia a nossa sociedade há séculos.”

Manual de Introdução ao Digesto, de Bernardo B. Queiroz de Moraes, Editora YK, 620 páginas.

 


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