As veredas completam 110 anos

Francisco Costa é editor chefe da “Revista USP” e editor de Artigos do “Jornal da USP”

 26/06/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 28/06/2018 as 10:25

Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Há exatos cento e dez anos (27 deste junho), a cidade de Cordisburgo, Minas Gerais, era posta no mapa com o nascimento de seu filho mais ilustre, João Guimarães Rosa (1908-1967), escritor que criaria a prosa de ficção mais espetacular do século XX no Brasil. Este texto procura, busca ser, não um trabalho de cunho acadêmico, mas jornalístico, uma homenagem ao escritor brasileiro que se tornou um mito, uma lenda, ao trabalhar a linguagem e criar o texto literário mais complexo e entranhado do país de Macunaíma, e morreu precocemente com 58 anos. Para escrevê-lo me vali da abordagem de seu único romance, Grande Sertão: Veredas, de 1956, ano em que o escritor publicou também sua primeira versão de Corpo de Baile – que continha um conto parente muito próximo desse livro e não menos intrigante, Meu tio o Iauaretê.

Quem conhece Grande Sertão sabe que estou aqui arrumando, como se diz, muita sarna pra me coçar, pela grandecíssima (passe a palavra) envergadura de linguagem alcançada e proposta por Rosa no livro. Assinalo, então, a partir daí que, a meu ver, o embrião de tudo aquilo que o escritor de Cordisburgo produziu de melhor já estava presente potencialmente em seu primeiro livro, de contos, publicado dez anos antes, cujo título é Sagarana. Tal afirmação pode ser redundante hoje, mas o fato é que o autor durante um bom tempo foi visto como um não muito simples autor regional.

Pois bem, tendo em vista tudo isso, e para não ser taxado aqui de megalômano, ou ingênuo, ou mesmo leviano, me vali da leitura de alguns ensaios, que me surpreenderam tanto em originalidade como em atualidade. Trata-se da Revista USP n. 36, lançada em 1997, ano em que a morte do artista completava 30 anos (o título do dossiê era justamente 30 anos sem Guimarães Rosa, pensado primeiramente como um “quem era quem” na literatura daquele período, mas que, para nossa surpresa, mais da metade dos artigos tratava justamente dele mesmo, Rosa). Assumo aqui que poderão dizer que faço “merchan” do próprio veículo em que trabalho. Não é o caso. Basta que se abra a revista 36 (estamos já na 117) e se comece a leitura do primeiro texto, de Aguinaldo Gonçalves, cujo título é “O legado de João Guimarães Rosa”.

Antes de prosseguir, preciso dizer que passei dias demais em cima de Grande Sertão para não ser inoculado pela frase rosiana, que na verdade, como tudo em Rosa, parece especiaria indiana – no sentido de tentar explicá-la, não de usá-la. E já li muitos bons textos sobre Grande Sertão para perceber que grande parte de seus críticos, impressionados com o verdadeiro arcabouço de linguagem do romance, muitas vezes acaba por emular, copiar, a linguagem de Riobaldo, o narrador-protagonista do romance. Assim, não é que o mestre Aguinaldo, depois de muitas idas e vindas teóricas de seu artigo, em que se embrenha lá pela semiótica e daí retorna, me sai com essa: “A magnífica articulação verbal de Guimarães Rosa metaforiza, ao mesmo tempo que realiza, a estrutura composicional da lírica”. Pronto, me tirou uma montanha das costas. A destreza da frase rosiana está aí enunciada ou anunciada. O escritor mineiro, que lembra flautista indiano a tirar a serpente do balaio com sua música, alcança um nível estupefaciente de malabarismos literários por longas, ininterruptas, 624 páginas. Vai aí uma de suas centenas de construções: “[…] Eu queria ir para ele, para abraço, mas minhas coragens não deram. Por que ele faltou com o passo, num rejeito de acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos de nós dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo notaram – isso no estado de tudo que eu percebi. O Menino me deu a mão e o que a mão diz é curto, às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo: isto também. E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava o Reinaldo”. Pronto, está aí.

Um parêntese aqui. Sagarana, seu primeiro livro – de contos – é pai e mãe da obra toda do artista mineiro. Por exemplo, seu Joãozinho Bem-Bem, do potente conto final, A hora e vez de Augusto Matraga, é lembrado numa fala de Zé Bebelo em Grande Sertão. Miguilim, outro dos célebres personagens do autor, é citado em outro de seus trabalhos. E a respeito do próprio título Sagarana, sempre me chamou a atenção o sufixo “rana”, que tem entre seus significados em tupi-guarani o sentido de “falso”, ou seja, Sagarana poderia ser entendido também como “saga falsa” – em oposição a outro especial conto de Rosa, Meu tio o Iauaretê, em que “etê” significa verdadeiro, ou seja, “meu tio a onça verdadeira”, reivindicado pelo também narrador-protagonista Tonho Tigreiro.

Mas voltemos ao Grande sertão. A história: o ex-jagunço Riobaldo recebe a visita em sua fazenda de um bem apessoado rapaz da cidade, tratamento a ele dado pela fineza de modos, depreende-se, e por ter “muito estudo”. Riobaldo o trata como é praxe naquela região: convida-o para passar pelo menos três dias em sua casa, enquanto conta ao viajante – pois se trata de um viajante – a história de sua vida, principalmente sua vida de jagunço. O rapaz não tem voz no romance, uma das astúcias de Rosa, mas faz lá suas perguntas e observações.

Três coisas me chamam a atenção nesse longo e estranhíssimo monólogo: em primeiro lugar, as construções verbo-literárias que marcam profundamente a estrutura do romance. Linguagem febril construída para desmontar o português usual e reescrevê-lo num outro patamar de entendimento: “E o mais – é peta! nonada”. Aliás, um dos encantos do livro é o seu início: “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas. Olhe: quando o tiro é de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o Sertão”. A palavra “nonada”, neologismo, já deu pano para muita manga e é repetida por Riobaldo, no livro, quatro vezes. Ouso dizer que uma das hipóteses de entendimento, como a primeira delas acima, significa: de jeito nenhum!

Uma segunda questão, e o livro é afamado também por isso, diz respeito ao pacto do ex-jagunço Riobaldo com o Diabo numa encruzilhada à meia-noite em regra, nas Veredas Mortas, região do “Sucruiú e Pubo”, onde, na ocasião grassava a bexiga preta. A bem da verdade, a obsessão do personagem para saber se o “tinhoso” existe ou não, ou seja, se ele – Riobaldo –  fizera ou não o pacto que comprometia sua alma, consome quase metade do livro, com recheio de histórias, descrições e passagens em que o ex-jagunço quer porque quer saber, do citadino e letrado convidado, se o Diabo realmente existe.

Indico sem susto ao leitor curioso sobre o tema do pacto o arguto artigo de Willi Bolle, crítico que conhece a obra de Rosa como poucos, e veio na década de 60 da Alemanha para o Brasil, seduzido justamente pelo encantamento da obra rosiana. Ensaio que está lá na Revista USP 36 também : “O pacto no Grande Sertão: esoterismo ou lei fundadora?”. Para Willi, o descomunal romance de Rosa é uma tentativa de, por sua vez, emular o outro texto gigantesco e fundamentalmente brasileiro, de 1902, o também magnífico Os Sertões, de Euclides da Cunha. Nesse sentido, ele faz a seguinte observação: “Quem chamou a atenção, entre os primeiros críticos, sobre a afinidade eletiva dessas duas obras e abriu pistas, de resto pouco usadas, foi Antonio Candido, em 1958”. No texto de Bolle encontramos: “No nível das exegeses, a obscuridade persiste, na que a inconsciência do personagem foi substituída por mitologizações dos intérpretes. Assim, o episódio do pacto permanece até hoje uma encruzilhada do romance, que precisa ser revisitada, com vistas a um deciframento”. Aí vai um pequeno trecho do pacto:

“ – ‘Lúcifer!Lúcifer!…’ – aí eu bramei, desengolindo.

“Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono.

“Lúcifer! Satanaz!…” Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais. – “Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus infernos!”. E por aí continua.

Um terceiro ponto, tão ou mais dramático e intrigante do livro, é o amor impossível de Riobaldo por Diadorim/Reinaldo. Uma história de amor recíproco que corrói Riobaldo o livro todo. Diadorim é filho de Joca Ramiro, chefe de um exército de jagunços, que luta contra os soldados do governo. Quando os bandos de Hermógenes e de Ricardão, braços direitos de Ramiro, o traem e o matam, Diadorim entra em obsessão de dor e ódio e devota sua vida, e a de Riobaldo, a buscar vingança contra os dois. Nosso jagunço-narrador, até aí um personagem meio periférico no comando das ações, depois do pacto, não se sabe por que, começa a enxergar com mais clareza todos os movimentos em que ele e seus companheiros estão envolvidos. E chega à conclusão de que, para a sobrevivência de todos de seu bando, precisa tirar Zé Bebelo da chefia, uma tarefa ingrata. Bebelo, a quem admirava e de quem fora professor na juventude, há tempos vinha tomando atitudes erráticas pondo em perigo a sobrevivência dos seus homens.

No momento em que Zé Bebelo é apeado do poder, Riobaldo, que era conhecido entre seu bando pelo apelido de Tatarana (“lagarta de fogo”, em tupi, pela sua habilidade de atirar), passa a ser tratado como Urutu Branco (uma cobra venenosa) e reúne sua tropa para ir de vez atrás de Ricardão e Hermógenes. A morte de Ricardão chega em forma de notícia. E Grande Sertão: Veredas tem seu gran finale na morte de Hermógenes por Diadorim que, por sua vez, também é ferido de morte no combate, vingando o pai,  perdendo a própria vida e causando um grande desespero a Riobaldo. A ironia, é que pouco antes do enfrentamento com Hermógenes, Diadorim diz a Riobaldo que, depois de vingado Joca Ramiro, e por conseguinte, a vida voltar ao normal, ele tinha um segredo a lhe contar. O segredo se revelou, de toda forma, depois de sua morte. Diadorim era mulher e se chamava Maria Deodorina da Fé Bittancourt Marins.

Para finalizar este texto e não ser acusado de complacência quanto a Rosa, fui atrás do talento de Antonio Medina Rodrigues (1940-2013), já falecido e que também está na revista 36, com o título “Reflexões sobre a escrita no Brasil”. Helenista de profundo conhecimento e fundo conhecedor das literatura brasileira e portuguesa, entre outras, Medina, ao escrever seu artigo para o dossiê 36, não se centra na figura de Rosa, mas estabelece uma linha crítica engenhosa, concisa, em que a obra do autor de Grande Sertão: Veredas é olhada com microscópio, como era seu costume. No seu modo de trabalho, no seu modo de enxergar a literatura, elabora uma fina reflexão centrada entre dois polos, romantismo e realismo, faz juras de amor a Machado de Assis e demoniza Rosa. Medina é inteligente demais para ceder a qualquer tipo de argumentação banal: “Depois da experiência virtuosista e prodigalizante de Guimarães Rosa, a prosa retomou algumas das lições de Machado, mas refazendo-as, em condições mais contundentes, e em traços mais enervados ou caricaturais. De Dalton Trevisan a Raduan Nassar topamos com essa tendência. Que é também, a seu modo, a tendência de fugir ao impasse aberto por Guimarães Rosa”. Não vou mais além, neste texto de Antonio Medina, justamente por ele ter sido não apenas um grande amigo, mas por reduzir, daí em diante, a obra de João Guimarães Rosa a pó de traque e pela coragem de, na época, desafinar o coro dos contentes (passe esta expressão também).

De toda forma, o Rosa de Grande Sertão não deve nada a ninguém. Ou se está com ele, ou se está contra ele. Estou do lado dos buritis, do Jalapão, de Diadorim, do Urucuia, dos pássaros, dos catrumanos (roceiros) etc. etc. etc. Prefiro fechar esta homenagem com uma frase do romance perpetrada sobre o amor impossível, dita melancolicamente pelo Riobaldo, ex-Tatarana, ex-Urutu Branco: “Diadorim é minha neblina.”

 


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