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Quando era criança, Leonardo Martins fugiu de casa com um objetivo: visitar um lugar mal-assombrado. Escondido dos pais, passou a noite numa casa abandonada do bairro onde morava que, segundo a lenda, era habitada pelo espírito de uma senhora falecida anos antes. Apesar da coragem, ele não encontrou fantasma algum e a aventura lhe rendeu apenas uma boa bronca quando foi descoberto. Mas o interesse por fenômenos sobrenaturais não ficou esquecido na infância.
Hoje, além de pós-doutorando no Instituto de Psicologia (IP) da USP, em São Paulo, Martins também é um dos pesquisadores que integram o Inter Psi, o Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais da Universidade.
Criado em 2010 pelos professores Wellington Zangari e Fátima Regina Machado, o Inter Psi possui, atualmente, cinco grupos de estudo, cada qual dedicado a uma área de pesquisa diferente dentro da psicologia anomalística.
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Mas o que é psicologia anomalística?
“A psicologia anomalística é uma área que estuda experiências humanas raras, excepcionais, que na cultura popular são chamadas de religiosas ou paranormais”, explica Martins. Todos os fenômenos “estranhos” dos quais ouvimos falar viram objeto de estudo: experiências extracorpóreas, de quase morte, aparições, mediunidade e até abdução por alienígenas.
Porém, ao invés dos fenômenos em si, o foco de análise são as pessoas que passam por eles. “Independente de essas coisas acontecerem de fato ou não, as pessoas que relatam são pessoas reais e, como estudamos psicologia, temos que entender esse tipo de experiência humana também”, ressalta o pós-doutorando.
A partir desses relatos, procura-se investigar os efeitos psíquicos que os causam, ou que são causados por eles. “Por exemplo: como é um médium em transe, que áreas do cérebro são ativadas ou desativadas e o que isso significa? Ou ainda, é possível que essas pessoas tenham algum problema mental? Como é a saúde psicológica delas?”, segundo Martins.
O princípio da psicologia anomalística se deu no século 19, com o interesse em fenômenos paranormais vindo de parte dos estudiosos daquilo que viria a se tornar a psicologia como conhecemos hoje. Seguindo essa onda, em 1882, foi fundada em Londres a Society for Psychical Research (Sociedade de Pesquisas Psíquicas), que reunia pensadores de diferentes áreas com o objetivo de pesquisar eventos sobrenaturais.
Em meados do século 20, esses tópicos perderam destaque com o crescimento do Behaviorismo, campo de estudo da psicologia que se pauta apenas por aspectos observáveis do comportamento.
Entretanto, com a chegada dos movimentos contraculturais dos anos 1960 e 1970, surgiu novamente um interesse por estados alterados de consciência e religiões do Extremo Oriente, como o budismo e o hinduísmo.
Aos poucos o tema voltou a ser importante, culminando com o lançamento do livro Anomalistic Psychology: a Study of Magical Thinking (1989), de Leonard Zusne e Warren Jones, e, mais tarde, com a criação da Anomalistic Psychology Research Unit (Unidade de Pesquisa de Psicologia Anomalística), fundada em Londres pelo professor Christopher French.
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No Inter Psi, existem algumas subdivisões de pesquisa:
- no IlusoriaMente (grupo de estudos interdisciplinares da percepção e da arte mágica), estuda-se ilusionismo;
- no GEHIP (grupo de estudos de hipnose e estados alterados da consciência), hipnose;
- no COG-R (grupo de estudos de ciência cognitiva da religião), mistura-se filosofia, neurociência, inteligência artificial e outros tópicos para pesquisar os processos cognitivos por trás de experiências religiosas;
- no Gealter (grupo de estudos sobre alterações e anomalias da identidade), o foco são estados alterados de consciência e questões de identidade, como a mediunidade;
- no GEPPSIREL (grupo de estudos e pesquisas em psicologia da religião), que também estuda religião mas pelo ponto de vista apenas da psicologia.
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Psicologia e arte mágica
O grupo de estudo do qual Leonardo Martins faz parte é o IlusoriaMente. Assim como os demais psicólogos integrantes, ele também é mágico. “Temos uma linha tanto teórica quanto prática, estudando os aspectos psicológicos subjacentes à arte mágica para entender como e por que funcionam, como é possível enganar a percepção e a memória e o que isso diz sobre o funcionamento psicológico no cotidiano. Por exemplo, será que esse mesmo mecanismo também te torna mais propenso a ser enganado por um discurso político?” Ele mesmo dá uma pausa e completa: “A resposta é sim”.
Criado em agosto de 2017, o IlusoriaMente é um dos grupos mais recentes do Inter Psi. Para divulgar o trabalho, em outubro eles receberam o foco na terceira Jornada do Inter Psi, com o evento A Ilusão entre a Ciência e a Arte: A Psicologia da Arte Mágica.
“Pouca gente sabe que é possível usar mágica para estudar psicologia, poucos mágicos sabem que você pode fazer esse percurso. Queríamos dar visibilidade para isso”, diz o pesquisador. Com um dia inteiro de debates, palestras e uma mesa-redonda, o evento teve também um número especial de mágica para o encerramento.
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Como explica Martins, “arte mágica” é apenas um termo um pouco mais preciso para o que geralmente se conhece como ilusionismo, que não deve ser confundido com mágica no sentido de magia ou feitiçaria.
“Estamos falando de uma arte, ilusionismo. São artistas que fazem coisas que parecem impossíveis através de métodos possíveis”, conta o pesquisador.
Estudando a arte mágica, pode-se entender uma série de mecanismos que operam em nossa mente no cotidiano, desde o efeito de determinadas cores em nosso cérebro até o viés de confirmação e outros fenômenos. “Conhecer esses princípios ajuda a nos prevenirmos um pouco também. Sabendo que você pode ser enganado de determinadas formas, você fica mais esperto. Esse conhecimento pode ajudar não só nós, psicólogos, como qualquer pessoa”, segundo Martins.
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Cursos e serviços
Além das atividades de pesquisa, o Inter Psi oferece cursos de extensão semestrais, em que o público geral pode conhecer mais sobre os tópicos de cada grupo de estudo e alguns serviços, como o Núcleo Clínico e o Acervo do Inter Psi.
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De acordo com o professor Wellington Zangari, o Núcleo Clínico nasceu tanto de um desejo dos membros do laboratório quanto do crescimento da procura por atendimento clínico por parte da população. Profissionais de saúde, principalmente psicólogos, médicos e enfermeiros procuram o laboratório com a intenção de se informarem a respeito de como lidar com pessoas com sofrimento psíquico ligado à religiosidade de seus pacientes.
“O Núcleo Clínico tem dupla função: atendimento a quem tem algum sofrimento psíquico ligado a questões religiosas e assessoria e treinamento de profissionais para essa demanda”, explica Zangari.
Por enquanto, há apenas atendimento individual, mas a previsão é de que em breve também sejam oferecidos atendimentos em grupo. Para solicitar agendamento, é necessário enviar e-mail para nucleoclinico.interpsi@usp.br e aguardar retorno.
O Acervo do Inter Psi é uma biblioteca/museu sobre as áreas de pesquisa do laboratório, constituída a partir de coleções pessoais de quatro pesquisadores ligados a ele, e será inaugurado no ano que vem para consulta presencial.
Quanto aos cursos, no primeiro semestre de 2019 serão oferecidos dois: Introdução à Psicologia Anomalística e A Psicologia Analítica de Jung e as Experiências Religiosas/Anômalas. As inscrições para participar começarão em fevereiro e os detalhes serão divulgados no site do laboratório.
Mais informações: e-mail interpsi.ip@usp.br
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