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A educação marcou de muitas formas a vida de Marcos Garcia Neira que, no dia 20 de junho, tomou posse como novo diretor da Faculdade de Educação (FE) da USP, em São Paulo, junto com o vice-diretor Vinicio de Macedo Santos. Filho de imigrantes, seus pais insistiam que a mudança e melhoria de vida dependeriam de seu esforço e estudo. Por isso, sempre teve a figura do professor como pessoa importante na sociedade.
Concluiu o ensino médio em um colégio militar e decidiu trabalhar com Educação Física. Durante 17 anos, atuou na educação básica, e percebeu a possibilidade de mudar a área em que atuava, caso entendesse melhor o fenômeno pedagógico. Por isso decidiu cursar Pedagogia. “Eu só deixei a educação básica quando fui aprovado em um concurso para ser professor na USP. Tenho bastante experiência em escola pública.”
A FE possui cerca de 900 alunos de graduação e 750 matriculados nos cursos de mestrado, doutorado e doutorado direto. Ela é responsável ainda por oferecer curso de Licenciatura para 2.400 estudantes de outras unidades da USP. Em entrevista ao Jornal da USP, o professor Marcos Garcia Neira fala sobre a educação no Brasil e a função da FE neste cenário. Confira:
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Para você, qual o papel da educação hoje?
A educação tem dois papéis: ajudar as pessoas a lerem e interpretarem a sociedade em que vivem e ajudá-las a transformar essa sociedade no sentido de diminuição da desigualdade social. Se a educação alcançar essas duas questões, ela terá feito bem o seu trabalho. Quando ensinamos Português, Matemática, Geografia, História, Física, Química etc, é para que as crianças, os jovens e os adultos possam ler a sociedade e melhorá-la. A educação deve caminhar para formar pessoas solidárias.
Não podemos continuar com projetos educacionais que visam apenas a garantir as competências básicas para a inserção no mercado de trabalho. Não é pra isso que a escola serve. Devemos fazer nosso trabalho, garantir que todas as crianças fiquem na escola, tenham experiências ricas e se tornem bons cidadãos e cidadãs. Isso inclui valorizar as diferenças, compreender como as coisas funcionam, dominar os códigos e sinais existentes e transformar as lógicas de funcionamento da sociedade.
Como você avalia o ensino público hoje no Brasil?
Você vai achar estranho o que eu vou dizer, mas nunca tivemos um ensino público tão bom quanto o que temos hoje. Pela primeira vez, estamos enfrentando duas grandes questões. Uma delas é garantir a inclusão e a permanência de todas as pessoas na escola. Quando dizem que o ensino no passado era melhor, é porque ele era para poucos. Desde a primeira década do século 21, temos nos esforçado não só para matricular, como fazer com que todas as crianças que ingressam no primeiro ano do ensino fundamental alcancem o último. Ou seja, trabalhamos na democratização do acesso e garantia de permanência. Nosso ensino faz força para incluir todos os jovens com deficiência e mesmo adultos que não se escolarizaram no tempo julgado adequado.
A outra questão é que, pela primeira vez, estamos enfrentando temáticas antes não discutidas. Temos feito debates sobre questões étnico-raciais, de gênero, de sexualidade, de religião. Possuímos materiais didáticos, currículos, propostas e práticas pedagógicas que adotam essa perspectiva inclusiva, de combate ao preconceito e à exclusão.
O que nos falta na educação pública, hoje, são boas condições de trabalho, bons salários, uma carreira mais atrativa e um envolvimento maior da comunidade. Mas, se compararmos a escola que temos agora com a que tínhamos há 30 anos, vemos que está muito melhor.
Então o ensino público está sendo efetivo? Mesmo com a proibição da reprovação do aluno?
Não reprovar o aluno é um benefício para a educação. O que tínhamos antes era uma pedagogia da repetência, que usava a reprovação como forma de castigo, de punição. Muitas vezes, você condenava o menino e a menina que, por questões sociais, não aprendiam. Eles tinham que repetir tudo com o mesmo método, a mesma pessoa e da mesma maneira. Por isso a ideia da permanência é tão importante, um dos grandes motivadores da evasão era a reprovação sucessiva. Hoje, a criança pode aprender sempre, com oportunidades diferentes ao longo dos anos.
Embora existam alunos que cheguem ao ensino médio sem saber ler e escrever perfeitamente, devemos pensar no que acontecia com essas pessoas há 20 ou 30 anos. Elas iam embora no primeiro ano. Devemos valorizar a permanência na sala de aula, tendo outras experiências. Claro que há muito a ser melhorado, mas, em uma sala de aula com 40 pessoas e experiências culturais diferentes, o professor luta contra uma série de dificuldades. Não temos como exigir que todo mundo se alfabetize como a classe média se alfabetizava nos anos 1960.
Pensando em grade curricular e metodologia, como a Faculdade de Educação participa das decisões tomadas no País?
A FE forma pessoas para trabalhar nas várias funções da educação, desde professor e professora da educação infantil ao ensino médio. Além disso, forma pesquisadores e produz conhecimentos sobre educação. Muito do que hoje se diz, pensa e faz em educação, ou foi produzido, atualizado, aprimorado pelos nossos trabalhos, ou é realizado por pessoas que saíram daqui.
Nosso curso de Pedagogia já formou muita gente que ocupa lugares importantes na educação. Temos professores que produzem conhecimentos que impactam diretamente a sala de aula. Grande parte do que se discute sobre política educacional, disciplina e prática pedagógica surgiu na FE.
Muitos professores trabalham assessorando a elaboração de propostas curriculares nacionais, estaduais e municipais. O que acontece na sala de aula tem muita contribuição da Faculdade de Educação e das pessoas que aqui trabalham há 50 anos.
A FE se posiciona em decisões que estão sendo tomadas no Legislativo, como a escola sem partido e o novo modelo do ensino médio?
Sempre que esses temas emergentes aparecem, a FE se posiciona. Postamos em nosso site vídeos de professores que falam sobre a reforma no ensino médio, escola sem partido, discussão de gênero, a base nacional curricular e quaisquer outros temas em debate.
Fazemos também vários eventos internos para discutir essas questões, com pessoas de dentro e de fora da faculdade. Chamamos pessoas que defendem diferentes ideias e, mesmo internamente, somos uma instituição bastante plural. Aqui não é uma instituição monocrática, temos várias visões e reconhecemos a importância disso.
Você vai continuar dando aula e coordenando seu grupo de pesquisas em Educação Física Escolar?
Claro! Estar na sala de aula, trabalhar com a docência e a produção de conhecimentos é a melhor coisa de ser professor da USP. Eu me tornei professor aqui para poder formar pessoas e continuar com pesquisa, a condição de direção é uma contingência, é um período para contribuir com esse coletivo. Eu continuo como sempre, com as minhas turmas, as reuniões do meu grupo, as minhas orientações. Isso faz parte.
Em seu discurso de posse, você comentou que quer “garantir que a instituição cumpra, de forma plenamente satisfatória, a sua função social”. Qual é essa função social?
A função social da Faculdade de Educação é formar educadores e educadoras pesquisadores e pesquisadoras e produzir conhecimentos sobre o fenômeno educacional de forma ampla. Queremos contribuir com a sociedade, formando pessoas que ajudem nesse processo de diminuição da desigualdade social e democratização da sociedade.
Uma sociedade mais democrática é aquela em que os bens culturais são mais bem repartidos e acessados. Não faz o menor sentido alguém escrever um livro que seja lido por poucas pessoas, ou produzir um filme assistido por poucas pessoas. Mas, só vamos garantir que todas as pessoas possam ler, assistir a filmes, construir casas e mudar essa sociedade, se garantir escola para isso. A vida democrática passa pelos professores.
A graduação na FE é mais voltada para o aluno que quer se inserir como professor no mercado de trabalho ou para aquele que quer seguir carreira acadêmica?
O projeto pedagógico de nosso curso é a formação de professores e de gestores da educação básica. Talvez, por isso, a imensa maioria de nossos alunos não se candidate à pós-graduação. Nossos alunos de mestrado e doutorado são, majoritariamente, pessoas que vêm de outros lugares do Brasil ou de outras instituições. Isso revela um caráter aberto da faculdade e o perfil do nosso curso. Temos muitos professores, inclusive, que não são ex-alunos. Além disso, nos últimos anos, 30% das pessoas que têm entrado no curso de Pedagogia, já são professores e estão aqui para buscar uma segunda licenciatura.
Uma pesquisa feita com nossos egressos revelou que 88% deles atuam em educação básica, isso é muita coisa. A grande empregadora de nossos ex-alunos é a rede pública municipal de educação, tanto pelo plano de carreira quanto pelo salário mais interessante. Eles também são muito atraídos pela rede privada porque, às vezes, a contratação ocorre antes mesmo da formatura.
Outro dado interessante é que passados dez anos de formados, esses egressos já estão em posições de liderança. São coordenadores, supervisores ou diretores, tanto na rede pública quanto na privada. Isso mostra que o aluno que teve a oportunidade de passar por aqui atua de outra maneira. Não estou dizendo que são melhores ou piores, mas eles têm outra leitura da educação, da escola e das pessoas que estão nela.
E os alunos da FE podem participar das decisões tomadas aqui na faculdade?
Sim, temos um projeto de construção de um conselho consultivo, com professores, funcionários e alunos, no qual todas as questões importantes da FE sejam discutidas. Já fizemos algumas reuniões para que isso ganhe corpo, pretendemos começar esse trabalho de uma gestão mais participativa no segundo semestre.
Mas, apesar disso, temos representação discente em todos os colegiados e as várias gestões do Centro Acadêmico sempre foram muito participativas. Sobretudo, temos um perfil de aluno que, em sala de aula, se posiciona bastante. Isso é o mais importante, o aluno que fala, tem opinião, sabe que pode se manifestar, se colocar.
Tem alguma mudança especial para fazer nos próximos anos como diretor da FE?
O Vinicio de Macedo Santos e eu queremos, principalmente, levar adiante esse projeto de gestão participativa, fortalecer o diálogo com a escola pública e conseguir melhorar a sensação que as pessoas têm ao trabalhar e estudar aqui. Para nós, é muito importante que as pessoas possam vir trabalhar e estudar sem se sentir mal ou oprimido, sem achar isso ruim. Queremos que as pessoas possam se colocar e tenham seu modo de pensar respeitado e reconhecido. As pessoas têm que se sentir acolhidas. Ao nosso ver, se mantivermos o diálogo, se as pessoas puderem ouvir e ser ouvidas, isso vai ser o principal.
Como é feito este diálogo com a escola pública?
Além de nossas pesquisas e nossos egressos, temos uma série de projetos interessantes aqui na FE. Um deles, são as escolas-campo, que são escolas conveniadas para que todos os alunos da Licenciatura e de Pedagogia possam realizar suas atividades de estágio. Essas escolas mantêm contato direto com a faculdade, são visitadas semestralmente, comunicam as alterações que fazem em seus projetos pedagógicos e, além disso, nossos alunos não precisam sair desesperados procurando um lugar para estagiar.
Também fazemos semanalmente eventos gratuitos que recebem professores em atuação na escola pública para atividades de formação. Realizamos palestras, seminários, colóquios.
Outro projeto muito importante se chama Projeto de Extensão à Rede Pública, no qual professores da escola pública, se quiserem, podem se matricular em até duas disciplinas da graduação. Então, em nossa sala de aula, temos professores da escola pública cursando matérias com alunos da FE. Nós abrimos as inscrições e, se o número de inscritos for maior que o de vagas para aquele turma, ou aquele professor, realizamos um sorteio. Nós somos, em minha visão, uma comunidade com diálogo direto com a sociedade e com os professores e professoras que produzem conhecimento diariamente. Existe um saber pedagógico muito importante para nossa área, que só aquele que trabalha ensinando sabe, então ele também precisa compartilhar isso e trazer para a Universidade.