O debate sobre a utilização da maconha para fins medicinais é antigo, mas por muitos anos não obteve o devido destaque. No Brasil, essa discussão só recebeu maiores atenções após o caso de Anny Fisher, em 2013. A menina, com 5 anos na época, sofria com até 60 crises convulsivas diárias e só encontrou conforto no canabidiol, importado ilegalmente para o país.
A necessidade de debater os benefícios do uso medicinal dos derivados da maconha foi o tema da nona edição do USP Talks. O evento, que é uma iniciativa da Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP) da USP em parceria com o jornal O Estado de S. Paulo e a Livraria Cultura, trouxe os professores José Alexandre Crippa, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, e Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com mediação do jornalista do Estadão Herton Escobar. A proposta era discutir a regulamentação do uso terapêutico da maconha e dos seus derivados (os chamados canabinoides).
O médico e professor Crippa destacou o papel pioneiro do Brasil nas pesquisas envolvendo canabinoides. A Cannabis sativa possui cerca de 500 substâncias, muitas ainda pouco conhecidas. A mais famosa delas, e o princípio ativo da planta, é o THC (tetra-hidrocanabinol), sendo o responsável pelos efeitos psíquicos do uso. Desde o surgimento de casos como o de Anny, o CBD (canabidiol) também se tornou conhecido por amenizar e até controlar crises convulsivas, náuseas e dores crônicas, entre outras doenças.
Ele explica que foi observado que o uso apenas de THC causava nas pessoas efeitos psíquicos bastante fortes, tais como psicose, crise de ansiedade e até ataque de pânico. Por outro lado, o uso apenas do canabidiol não causava essas crises, pelo contrário, ele conseguia minimizar os efeitos do THC. Foi questionado então se o canabidiol seria capaz de controlar ataques psicóticos, de ansiedade e crise de pânico reais, e não apenas os causados pela droga. Nesse sentido, o Brasil foi um dos únicos países a investir na pesquisa com canabinoides, enquanto outros países optavam por buscar ajuda em outros medicamentos para essas doenças. Neste ano, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto irá inaugurar o primeiro Centro de Pesquisas em Canabinoides do País, com o intuito de aprofundar os estudos na área.
Desde 2013 o Brasil avançou no tratamento à base de maconha medicinal. Antes de 2013, os Fisher eram obrigados a importar ilegalmente o CBD para Anny. Após a divulgação do caso na imprensa, a Anvisa liberou a entrada do produto. Porém, ainda é necessário vencer a barreira do preconceito, que atrapalha o avanço científico no assunto. Crippa conta que durante anos os estudos sobre os canabinoides ficaram estacionados. “Houve um certo desinteresse na época. Existiam novas medicações que estavam sendo comercializadas. E basicamente eram os grupos brasileiros que estavam pesquisando sobre os canabinoides no mundo.”
Uso recreativo
Casos como o de Anny reacenderam os debates sobre a liberação do uso medicinal da planta, antes totalmente proibido no Brasil. Mas os palestrantes alertam que é necessário fazer um debate mais científico e menos enviesado, seja para a completa proibição, seja para a liberação absoluta. O psiquiatra Ronaldo Laranjeira destaca que hoje a discussão gira muito mais em torno da liberação do uso recreativo, mas é necessário olhar para os riscos que isso representa. Para ele, é um mito dizer que o uso da planta causa dependência em poucas pessoas. “Eu tenho percebido uma mudança no público que busca por ajuda com dependência química. A maioria dos meus pacientes busca ajuda por causa da maconha”, ele argumenta.
Ambos os palestrantes apontaram os riscos de fumar a planta durante a adolescência. Laranjeira explica que é entre o período dos 13 aos 25 anos que o cérebro tem sua fase de maior desenvolvimento, chamado “poda neural”. A utilização da maconha nessa fase pode afetar esse desenvolvimento, causando sequelas no raciocínio e na memória. Casos de crises psicóticas frequentes também podem ser encontrados, tanto em pessoas com predisposição à psicose e crises de ansiedade, quanto naquelas que nunca apresentaram casos anteriores.
“Foi verificada na maconha utilizada nos Estados Unidos, em 2002, a presença de 6% de THC contra 1% de CBD. Em 2012, ou seja, dez anos depois, foi verificada a presença de 12% de THC contra menos de 0,5% de CBD. Isso é bastante preocupante, pois o THC é o causador das crises psicóticas, enquanto o CBD é capaz de reduzi-las”, explica Crippa.
O professor Laranjeira enxerga uma forte influência dos grandes veículos de comunicação no debate enviesado sobre o tema. Para ele, a ausência de caráter científico no assunto leva a discussão apenas para um lado, que seria o da legalização do uso recreativo. “Eu, como médico, sempre vejo o lado que deu errado, e a mídia não mostra isso. Em termos de saúde pública, é indefensável a liberação do uso”, argumenta.
Os palestrantes destacaram que é fundamental entender que a liberação para uso medicinal não significa que pacientes, como Anny, irão fumar a planta propriamente dita, mas sim compostos já previamente estudados e que não farão mal aos pacientes.
O USP Talks acontece toda última quarta-feira do mês e visa a trazer assuntos que estão em alta na mídia para o público de uma forma simples, porém científica. O jornalista Herton Escobar adianta que os próximos temas serão aborto e paleontologia no Brasil.