LIVROS DA FUVEST

Série do Jornal da USP aborda as obras exigidas no exame de ingresso para a USP

A ilustre casa de Ramires traz desafio da história dentro da história

O romance, de publicação póstuma, é considerado o ápice da trajetória de Eça de Queirós, um dos mais importantes escritores de língua portuguesa do século 19

 Publicado: 19/07/2024

Texto: Leila Kiyomura

Quando começar a folhear o livro A ilustre casa de Ramires, os estudantes vão logo compreender a sua importância na trajetória do autor Eça de Queirós e a iniciativa da Fuvest em exigir o livro no vestibular de 2025, considerado, pelos críticos literários, um dos mais singulares da narrativa queirosiana. A obra está em domínio público e disponível on-line neste link.

“Trata-se de um romance considerado como semipóstumo. Se foi integralmente escrito por Eça, ele não chegou a revisá-lo até o fim”, observa Paulo Fernando da Motta de Oliveira, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Parte da revisão, a partir de cerca da metade do Capítulo 10, foi feita por Júlio Brandão e, como o manuscrito que foi utilizado para isto desapareceu, não é possível saber se a parte final da obra corresponde ao que Eça desejava.”

A ilustre casa de Ramires apresenta, em 12 capítulos, a história de Gonçalo Mendes Ramires. “Trata-se de um romance totalmente centrado no personagem principal. Tudo o que nós, leitores, sabemos, à exceção da parte final, depois que se muda para Lisboa, é aquilo que Gonçalo vivencia ou pensa”, explica Motta. “Não é o primeiro romance de Eça que tem o foco narrativo centrado no personagem principal, isto já havia ocorrido em O mandarim e A relíquia. Mas o que o torna único no conjunto da obra eciana é que não temos acesso apenas à vida do protagonista, mas também ao romance histórico que ele está escrevendo, A torre de D. Ramires. Gonçalo possibilita aos leitores ler aquilo que está escrevendo, o que era inédito nas obras de Eça. Trata-se de um romance peculiar, que possui importância na trajetória ficcional de Eça de Queirós.”

Paulo Fernando da Motta de Oliveira, professor da FFLCH USP - Foto: Júlio Bazanini

Paulo Fernando da Motta de Oliveira, professor da FFLCH USP - Foto: Júlio Bazanini

Gonçalo escreve um romance pois julga que, se o livro tiver sucesso, isto poderá ser um trampolim para que possa entrar na vida política, e ser eleito deputado”

“Desde as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de junho, o Fidalgo da Torre, em chinelos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita cor-de-rosa, trabalhava. Gonçalo Mendes Ramires (que naquela sua velha aldeia de Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo “Fidalgo da Torre”) trabalhava numa novela histórica, A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número dos Anais de Literatura e de História, revista nova, fundada por José Lúcio Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do Cenáculo Patriótico, em casa das Severinas…”

Eça de Queirós e os filhos José e Maria na França, na década de 1890 - Foto: Acervo/Fundação Eça de Queirós

Logo no primeiro parágrafo do primeiro capítulo de A ilustre casa de Ramires, o leitor percebe o desafio de mergulhar na história da história que Gonçalo Mendes Ramires, conhecido por “Fidalgo da Torre”, se compromete a escrever. “Temos, nas primeiras linhas do romance de Eça, indicados aspectos que percorrem todo o enredo. Gonçalo escreve um romance pois julga que, se o livro tiver sucesso, isto poderá ser um trampolim para que possa entrar na vida política, e ser eleito deputado. Deseja ser deputado pois pensa que esta é a única forma de conseguir sair da província e ter dinheiro suficiente para organizar a sua vida”, conta o professor Motta. “Ele é, ao mesmo tempo, um aristocrata de uma família que, na península, é mais antiga que o reino de Portugal, e alguém sem dinheiro suficiente para se manter em Lisboa, com dívidas do seu período de estudante em Coimbra ainda não pagas. A narrativa seguirá intercalando a história de Gonçalo com a que está escrevendo, sobre um antepassado, Tructesindo Mendes Ramires, que ocorre no século 18.” 

Gonçalo, na análise do professor Paulo Fernando da Motta, é um personagem complexo e cita algumas características principais. “A primeira, de que tem consciência, é um medo que o faz rebaixar-se sempre que passa por uma situação de perigo. A segunda, que não chega a dar importância, é uma bondade que o faz ter atitudes que não eram habituais para pessoas de sua classe. A terceira é um oportunismo que o leva, por um lado, a modificar a narrativa de fatos que viveu, para adequá-los à imagem que gostaria de ter de si, e por outro, a ter atitudes que vão contra suas convicções, quando elas são necessárias para seus objetivos.”

Se for resumir a história de Gonçalo, de forma objetiva, diria que ele é alguém que quer sair de sua aldeia, onde é uma figura importante, mas não tem dinheiro suficiente para isso”

A ilustre casa de Ramires, de Eça de Queirós, é um dos nove livros exigidos no Vestibular 2025. Para ajudar os estudantes a perceber detalhes importantes da história de Gonçalo Mendes Ramires, o Jornal da USP traz, neste vídeo, as explicações do professor Paulo Fernando da Motta de Oliveira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) USP. Clique no player para conferir.

As facetas de Gonçalo

O professor justifica para os vestibulandos: “Um resumo bastante sintético do episódio do arrendamento da quinta em que morava pode mostrar essas várias facetas”. E pontua: “O rendeiro, no início da narrativa, era Manuel Relho, que num dia em que havia bebido demais, atirou umas pedras na vidraça da biblioteca da casa de Gonçalo. Assustado, o protagonista fugiu para o seu quarto, e não só fechou a porta à chave, mas ainda colocou móveis para impedir que ela fosse aberta. Lá ficou o resto da noite. No dia seguinte, convocou o regedor, e Manuel foi despedido. Logo em seguida apareceu um outro lavrador, o Manuel Casco, que tinha interesse em alugar a quinta. Depois de alguma discussão sobre o valor do arrendamento, Casco aceitou o que foi pedido por Gonçalo. O pacto foi selado com um aperto de mãos. Mais de uma semana depois, um outro lavrador o procura, Manuel Pereira, propondo um valor ainda maior. Ele afirma que o Casco havia combinado de vir tratar da escritura, e que não voltou, o que o leitor sabe ser falso. E, com este,  assina uma escritura. Uma noite, em que estava passeando em suas propriedades, Gonçalo vê Casco. Eles discutem. Casco ergue um cajado, diz para o fidalgo fugir, senão ele o mata e estará perdido. Gonçalo foge, atabalhoado”. 

Retrato de Eça de Queirós, escritor e diplomata português - Foto: Acervo/Fundação Eça de Queirós

O professor explica: “Ele mudará a versão do que ocorreu várias vezes. Para um criado, dirá que Casco estava com uma espingarda, e para o próprio Casco, tempos depois, dirá que estava com um revólver e que fugiu para não matá-lo. Mas a história não termina aqui. Gonçalo fará que Casco seja preso. A mulher deste, com os filhos, vai procurar Gonçalo, num dia de chuva. Pede que ele interfira, para que seu marido seja solto. Ele diz que o fará, mas ao perceber que uma das crianças tem febre, diz que ela continuará no solar, e que cuidarão dela, numa clara manifestação de suas características bondosas. Após ser solto, Casco irá agradecer a Gonçalo, que protegeu o seu filho, e dirá que está disposto a mesmo dar sua vida, se ele o pedir.”

Capas de edições do livro A Ilustre Casa de Ramires - Foto: Reprodução/Editoras

Narrativa complexa

Segundo o professor, a indicação dos aspectos deste acontecimento mostra como a narrativa é complexa. Na avaliação de Motta, qualquer síntese do romance será parcial e incompleta. “ Se for resumir a história de Gonçalo, de forma objetiva, diria que ele é alguém que quer sair de sua aldeia, onde é uma figura importante, mas não tem dinheiro suficiente para isso. Acaba conseguindo realizar o seu desejo de ser eleito deputado, mas descobre que não era bem isso o que queria. Consegue ter o direito de explorar uma propriedade em Moçambique, para onde vai. A narrativa termina com uma carta que faz referência a seu retorno a Lisboa. Rico e talvez prestes a realizar um casamento com a possível herdeira de uma grande fortuna. Penso que, para conhecer melhor a história, é necessário ler o romance, pois qualquer resumo acabará por não fazer referência a aspectos do livro que o fazem ser, ainda hoje, muito interessante.”

O professor Paulo Motta, que se dedica ao estudo e ensino da literatura portuguesa, deseja aos estudantes uma boa leitura. Enfatiza: “A ilustre casa de Ramires é uma oportunidade para conhecer Eça de Queiroz, um dos mais importantes escritores de língua portuguesa do século 19″. Suas obras são muito lidas e prestigiadas no Brasil e foi um dos colaboradores na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro.

A Ilustre casa de Ramires, de José Maria Eça de Queirós, 229 páginas. Obra em domínio público, disponível on-line neste link

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