O equilíbrio entre o cuidado mental e a hipermedicalização do sofrimento psíquico

O pesquisador Thiago Marques Leão afirma a necessidade de entender as complexidades sociais envolvidas na saúde mental e ressignificar o papel do sofrimento psíquico 

 15/09/2023 - Publicado há 10 meses
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Os conflitos sociais que geram um desconforto são sempre observados sob um viés clínico médico a serem respondidos por uma tecnologia farmacêutica – Fotomontagem: Jornal da USP – Foto: Freepik
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O Datafolha divulgou um levantamento sobre a percepção dos brasileiros sobre seu estado psicológico e bem-estar mental, revelando a complexidade do tema e seus parâmetros. De acordo com os dados, cerca de 70% dos brasileiros afirmaram ter uma saúde mental boa ou ótima, em paralelo a relatos de ansiedade e dificuldades de dormir e comer. Thiago Marques Leão, pesquisador do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, destaca que a presença de sintomas não é o mesmo que uma saúde mental ruim, assim como o quadro contrário. 

Sem medidas universais 

Thiago Marques Leão – Foto: FSP

Diferentemente da medicina tradicional, em que existe um manual padronizado de sintomas e diagnósticos, Leão comenta que tal abordagem não acompanha a complexidade do campo psicológico, na medida em que uma boa saúde psicológica não significa uma ausência de sintomas, já que a presença de sintomas não representa, necessariamente, uma condição insatisfatória. “As questões de saúde mental não são como a febre, que até 37,4ºC o paciente está bem e a partir de 37,5ºC tem febre, porque há algo efetivamente singular e que não pode ser reduzido a métricas frias”, explica o especialista. 

Mesmo com o maior debate sobre o assunto, a partir de séries, programas e até mesmo cobertura midiática, que contribui para a redução do preconceito, uma visão da saúde mental medicalizada predomina na sociedade. Thiago Leão comenta que, apesar do crescente cuidado psicológico, a busca predominante ainda se estabelece na procura por medicamentos e uma solução imediata para o mal-estar. 

Juntamente com a abordagem metrificada, o excesso de nomeação e medicalização, nem sempre necessário para o bem-estar mental, também é problematizado, uma vez que reduz a complexidade do psicológico individual. Além disso, restringe as possibilidades de tratamento, já que os conflitos sociais que geram um desconforto são sempre observados sob um viés clínico médico a serem respondidos por uma tecnologia farmacêutica. 

Ressignificação da saúde mental

Para um entendimento mais aprofundado desse campo é preciso, apesar do claro aspecto íntimo e pessoal da saúde mental, ir além dos casos factuais e entender tais experiências em conjunto com os fatos sociais. Nesse cenário, Leão ressalta a importância do reconhecimento do impacto direto e indireto das complexidades sociais da realidade nas relações interpessoais. O ideal de mulher, homem, maternidade, felicidade, trabalho e produtividade são algumas das demandas socialmente estabelecidas que impactam o bem-estar mental dos indivíduos. 

Dessa forma, apesar de ser percebido e vivido de forma íntima, Thiago Leão introduz o entendimento do sofrimento psíquico como um fenômeno social, uma vez que as expectativas e preconceitos, muitas vezes, não são correspondidos pela sociedade. “Sem essa percepção, não só se responde de forma inadequada, mas potencialmente piora os quadros psicopatológicos, porque reafirmamos a sobrecarga individual e os sentimentos de culpa”, alerta o especialista. 

Uma visão da saúde mental medicalizada predomina na sociedade – Foto: Reprodução/Freepik

Papel do sofrimento 

Além de entender a saúde mental como um campo sem medidas frias determinantes e como parte de um produto social, também é necessário observar o sofrimento por um outro ponto de vista. Leão chama atenção para o papel intrínseco à experiência humana empenhada pelo desconforto e como o oposto – nunca se sentir ansioso ou insatisfeito psicologicamente – pode exigir maior cuidado. 

“O mal-estar pode ser importante para que se perceba situações negativas e se repense escolhas para continuar caminhando. Então, geralmente o sofrimento é importante para não ficar estagnado e aceitar de forma passiva situações que são problemáticas”, considera o pesquisador. Ele ainda acrescenta que, salvo casos mais graves, em que “o sofrimento se torna insuportável e impacta negativamente a rotina das relações”, o tratamento excessivamente baseado em medicamentos pode dificultar esse processo de ressignificar experiências, na medida em que há um abafamento dos sintomas e sentimentos.

Thiago Leão pondera que outras alternativas de tratamento – como a clínica psicológica, psicanalítica, técnicas pela arte ou meditações – ainda são vistas como complementares à busca por ajuda muito medicalizada. “Sem dúvida é uma balança e um equilíbrio muito delicado que se tem entre os perigos de não conhecer a necessidade de buscar cuidado e o risco dessa hipermedicalização dos impasses sociais subjetivos”, estabelece. 

Cenário brasileiro 

Como um produto social, o especialista destaca como a formação sócio-histórica impacta a saúde mental da população do País. Fatores como a desigualdade social, racial e de gênero, segundo Leão, resultam em grupos sociais mais atingidos e vulneráveis à internalização de ideais sociais produzidos e, consequentemente, em riscos à saúde mental. 

Um exemplo bem visível para entender esse fenômeno, na visão do especialista, diz respeito a mulheres que são pré-concebidas na sociedade brasileira, organizada de forma extremamente sexista em detrimento destas. “Com demandas inconciliáveis da casa e do trabalho, em que passam pelo constrangimento de serem menos valorizadas, acabam sentindo-se inadequadas e insuficientes tanto em um espaço como em outro e, com isso, internalizam o sentimento de culpa e ansiedade”, analisa Leão.

Além disso, as mulheres não encontram formas de responder, a não ser tentando suprimir a demanda até que se torne insuportável com o adoecimento e uma resposta medicalizada sem a análise mais ampla da situação. Essa situação se agrava ainda mais quando existe uma baixa condição social, uma vez que, de acordo com o pesquisador, a parcela mais empobrecida apresenta ainda maior dificuldade de encontrar apoio no sistema público de saúde. 

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo


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