Chuvas no Saara mostram um futuro incerto de um planeta assolado por eventos climáticos extremos

Mesmo com impactos positivos, como florescimento e a maior disponibilidade de água, além do ressurgimento de lagos, especialistas explicam que as inundações nas dunas também provocam prejuízos

 17/10/2024 - Publicado há 2 meses     Atualizado: 18/10/2024 às 9:36
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Imagem que mostra o deserto do Saara
Tradicionalmente, o Saara é caracterizado por altas pressões e movimento descendente do ar Foto: Fraguando/Wikimedia Commons – CC BY-SA 4.0
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As chuvas recentes que surpreenderam o deserto do Saara levantaram uma série de questões sobre o comportamento climático na região. Com enchente rara, foram formadas lagoas entre as dunas, o reaparecimento de lagos — como o Iriki, no Marrocos, que estava seco há mais de 50 anos — e o florescimento da vegetação local, algo praticamente inexistente no cotidiano do Saara.

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Anita Drumond, pesquisadora do GrEC (Grupo de Estudos Climáticos), em conjunto com a professora Rosmeri Porfirio da Rocha, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), ambos da Universidade de São Paulo, esclarece que, embora a causa exata dessas precipitações não tenha sido totalmente compreendida, algumas pistas podem estar relacionadas ao aquecimento das águas oceânicas. Segundo elas, esse fenômeno pode ter alterado a posição da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), uma banda de chuvas que se organiza nas imediações da Linha do Equador por todo o globo e migra na direção norte-sul ao longo do ano.

Mudanças atmosféricas

Tradicionalmente, o Saara é caracterizado por altas pressões e movimento descendente do ar, condições que inibem a formação de nuvens e chuvas. No entanto, em agosto de 2024, as temperaturas da superfície do mar no Atlântico Norte, no Mediterrâneo e na costa da Guiné estavam mais quentes, o que fez com que a ZCIT se deslocasse cerca de 200 a 300 quilômetros ao norte. “Isso possibilitou a ocorrência de chuvas mensais acima de 100 milímetros por mês, onde normalmente chove menos de 10 milímetros por ano”, complementa Rosmeri.

Além disso, Anita explica que, associado às chuvas, houve mudanças nos ventos e as pressões em superfície ficaram mais baixas do que o normal no norte da África. Ela afirma: “Essas modificações na pressão e nos ventos favoreceram a entrada de um ciclone extratropical vindo do Atlântico Norte nos dias 7 a 9 de setembro, que produziu chuva acima de 100 a 200 milímetros por dia em várias regiões do norte da África”.

Anita Drumond – Foto: Lattes

Outros eventos climáticos

A pesquisadora relata que o primeiro candidato a explicar o evento seria a ocorrência do El Niño, caracterizado pelo aquecimento das águas do Pacífico Tropical Leste. Contudo, o fenômeno geralmente está associado à seca no Saara e na costa do Golfo da Guiné, além de estar em transição para o La Niña, que resfria as águas do Pacífico Tropical. Ela também comenta que, conforme alguns estudos, o deslocamento ao norte das chuvas associado à zona de convergência intertropical pode resultar do aquecimento global, com consequências ainda não totalmente conhecidas.

Mesmo sem uma definição exata do que causou a inundação no deserto, Anita ainda alerta: “De qualquer forma, as temperaturas no setor tropical do Pacífico Oeste, do Atlântico Norte e do Mediterrâneo continuam muito aquecidas. Inclusive, o aquecimento observado do Atlântico nos últimos meses na costa da Guiné Equatorial caracteriza o que denominamos ‘El Niño do Atlântico’, fenômeno que costuma afetar o regime de chuvas de monção no oeste africano, trazendo chuvas para a região do deserto do Saara”.

Maria Elisa Siqueira Silva – Foto: Lattes

De acordo com a especialista, a raridade dessas chuvas no Saara é explicada pela predominância de altas pressões em superfície e baixos níveis de umidade, que limitam a formação de nuvens — essa condição predomina não apenas no norte da África, mas em desertos de todo o mundo. Maria Elisa Siqueira Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, acrescenta: “A formação de nuvens depende de movimento ascendente do ar. Essa é a razão principal que faz com que muitas regiões globais ao redor de 30º Sul e Norte, nos dois hemisférios, sejam desérticas, como, por exemplo, o Saara, a Austrália e a Patagônia”. A docente informa que a localização a leste e a oeste dos continentes também ajuda a definir regiões chuvosas e mais secas, devido às correntes oceânicas e atmosféricas mais aquecidas e mais frias, respectivamente.

Impactos atuais e futuros

Os impactos imediatos dessas chuvas são visíveis na transformação da paisagem, no florescimento da vegetação, no reaparecimento de lagos e na maior disponibilidade de água para atividades humanas. Porém, a professora afirma: “Apesar de a chuva em uma região desértica ser benéfica, a chuva extrema pode causar prejuízos, como foi o caso de Marrocos, onde várias pessoas morreram. Os cenários de mudanças climáticas divulgados pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) indicam a maior frequência de eventos extremos em várias regiões do globo, inclusive no deserto do Saara”.

Imagem, quase um desenho, que representa uma visão aérea do deserto do Saara
A raridade de chuvas no Saara é explicada pela predominância de altas pressões em superfície e baixos níveis de umidade, que limitam a formação de nuvens Foto: Reprodução/Rádio BandNews FM – Youtube
Rosmeri Porfirio da Rocha – Foto: Incline/USP

Rosmeri explica que, como esses eventos extremos poderão ocorrer com maior frequência em um planeta mais aquecido, é prioritário desenvolver políticas públicas para diminuir os impactos negativos, como mortes e destruição de infraestrutura, já que as populações locais não estão preparadas para lidar com chuvas tão intensas. A professora destaca que algumas análises de cenários de mudanças climáticas com condições extremas de poluição indicam o deslocamento da ZCIT para o norte, observado durante as inundações no Saara. “Ainda não podemos afirmar se esse deslocamento se manterá nos próximos anos. De qualquer forma, sabemos que os eventos extremos serão mais recorrentes em um planeta mais aquecido”, conclui.

As chuvas também causaram grandes impactos visuais, com destaque para o retorno do lago Iriki. Mesmo sendo um acontecimento notável, a docente entende que não é o suficiente para mudar permanentemente a geografia da região, e finaliza: “Para mudar um ecossistema é necessário mudanças de longo prazo no clima. E ainda não está claro se as anomalias de chuva estiveram associadas aos fenômenos de variabilidade natural, como a transição do El Niño para La Niña e o fenômeno do El Niño do Atlântico, ou às mudanças climáticas”.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira


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