Samba traz em sua história a marca do protagonismo feminino

Neste Dia Nacional do Samba, o Jornal da USP traz parte da trajetória de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata. Também conhecida como “Mãe do Samba”, ela chegou a reivindicar a sua autoria no primeiro samba gravado no Brasil

 Publicado: 02/12/2024 às 17:14

Texto: Antonio Carlos Quinto e Silvana Salles

A relação de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, com o samba é marcada por uma controvérsia em relação à primeira música do gênero gravada em disco no Brasil: Pelo Telephone. No dia 16 de dezembro de 1916, Ernesto Maria dos Santos, o Donga, registrou a partitura para piano da música na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Mas, como conta ao Jornal da USP a jornalista Cláudia Alexandre, que é doutoranda no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Tia Ciata chegou a reivindicar parceria na composição. “Essa reivindicação saiu até nos jornais da época e a música se tornou um grande sucesso no ano seguinte”, lembra a jornalista.

De acordo com alguns registros, como descreve o radialista Moisés da Rocha, que apresenta na Rádio USP há mais de 40 anos o programa O Samba Pede Passagem, a baiana Tia Ciata e outros frequentadores das rodas musicais realizadas em sua casa alegaram que a música havia sido feita coletivamente e que Donga, um dos participantes, havia registrado em seu nome, e em parceria com o jornalista Mauro de Almeida.

Imagem: Foto em preto e branco de mulher negra usando roupa rendada e colares

Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata. De acordo com Cláudia Alexandre, esta imagem, que é das mais usadas para retratar a "Mãe do Samba", como outras, pode ser questionada em sua autenticidade - Foto: /Wikimedia Commons

Cláudia estuda a trajetória de Tia Ciata há 16 anos e tem participações em coletâneas como Mães do samba e do axé: de Ciata de Oxum às tias Baianas Paulistas, da Coleção Sambas Escritos/ org, de 2018, e Tia Ciata sim, por que não? Ou como rebater a história única da matriarca negra do samba – Movimento do Samba: 10 anos de samba, de 2020.

Imagem: Desenho ilustrado, com fundo azul, de Tia Ciata

Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, é uma das personagens mais importantes da história do samba – Ilustração: plenarinho.leg.br – Câmara dos Deputados

Nessas participações a jornalista já questionava uma certa invisibilização de Tia Ciata em relação ao samba. Cláudia continua suas pesquisas sobre a matriarca do samba e no próximo ano (2025) deverá lançar um livro sobre Tia Ciata. “Está na hora de a história de Tia Ciata ser contada por uma mulher”, pondera a pesquisadora e jornalista, antecipando que o livro “será uma narrativa contra-hegemônica sobre as histórias contadas desta mulher preta que chegou ao Rio de Janeiro, vinda da Bahia, em 1876, aos 22 anos”. A própria Tia Ciata, segundo a jornalista, dizia ter nascido no dia 13 de janeiro de 1854. Ela morreu no ano de 1924, há cem anos.

Outra situação que é questionada pela jornalista é sobre a imagem de Tia Ciata. De acordo com Cláudia Alexandre, a foto mais utilizada de dona Hilária Batista ainda gera dúvidas sobre a sua autenticidade.

É possível afirmar que, na verdade, não se conhece o rosto de Tia Ciata. O que se tem podemos classificar como sub-representações. Boa parte das biografias de Tia Ciata foi escrita por homens e estudiosos brancos.

Cláudia Alexandre - Foto:

Cláudia Alexandre - Foto: Arquivo pessoal

Na Pequena África

Em sua chegada ao Rio de Janeiro, Tia Ciata se estabeleceu nas imediações da Praça Onze de Junho, no bairro Cidade Nova, região central do Rio de Janeiro. Devido à grande população afrodescendente, a região ficou conhecida como Pequena África.

Ela trabalhou como quituteira e costureira, tendo confeccionado e alugado trajes para peças de teatro. Além disso, junto com as outras “tias” baianas da Pequena África, foi uma importante liderança comunitária, responsável pela manutenção das tradições africanas.

A casa de Tia Ciata foi um ponto de encontro importante de artistas, jornalistas, intelectuais e da boemia carioca do começo do século 20. Iniciada no candomblé ainda em terras baianas, ficou famosa pelos saraus e festas que promovia. Os pontos altos do calendário eram as festas de São Cosme e Damião – sincretizado com o orixá Ibeji – e de Nossa Senhora da Conceição – sincretizada com Oxum.

A Praça Onze, que foi sede do carnaval oficial do Rio no começo do século 20, já não existe mais. Em 1940, foi demolida para dar lugar à construção da Avenida Presidente Vargas. Porém, a memória como berço do samba persistiu.

Paço Municipal do Rio de Janeiro no final do século XIX, demolido para a construção da Avenida Presidente Vargas - Foto: Arquivo Nacional/Domínio/Wikimedia público

Construção da avenida, em 1944 - Foto: Autor Desconhecido/Arquivo Nacional/Domínio público via /Wikimedia Comons

Segundo os pesquisadores Renata Monteiro Siqueira e Rafael do Nascimento Cesar, muito disso é decorrente do projeto Depoimentos Para a Posteridade, do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS RJ). Liderado pelo primeiro diretor do museu, Ricardo Cravo Albim, o projeto começou em 1966 e consistia na gravação de entrevistas com personalidades de diversos setores da cultura carioca. As primeiras gravações foram justamente com três sambistas das antigas que costumavam circular pela Praça Onze: João da Baiana, Pixinguinha e Donga.

Em um artigo publicado na Revista do IEB, argumentam que a narrativa do nascimento do samba carioca na casa de Tia Ciata reflete os vínculos pessoais de Cravo Albim, um intelectual branco que frequentava o ambiente boêmio das rodas dos bambas do Rio. “Havia duas narrativas de origem [do samba], uma que era a cidade e a outra, o morro. E o MIS é uma dessas instituições que vai dar voz a essas pessoas, como Pixinguinha, João da Baiana e Donga, que vão dizer: ‘ó, o samba nasceu mesmo aqui na casa da Tia Ciata’”, contou Rafael ao Jornal da USP pouco depois da publicação do artigo, em 2023. “Todos que entrevistam lá no Rio de Janeiro o João da Baiana, o Donga, têm pelo menos uma história de bebedeira com esses caras”, destacou o pesquisador.

Moisés da Rocha destaca que o jornalista e crítico musical José Ramos Tinhorão sempre afirmou que Pelo Telephone “é uma colcha de retalhos, com nuances de batuques, estribilhos de folclore baiano e maxixe carioca”.
O radialista ressalta ainda que, até os dias atuais, o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) vem registrando o “batuque original” daquele que viria a ser chamado de a maior expressão da cultura popular, o samba, em várias regiões do País.

2 de Dezembro

Com relação à data, 2 de dezembro, Moisés da Rocha lembra que, segundo publicação do escritor e pesquisador J. Muniz Jr., corroborada por Osvaldinho da Cuíca – primeiro Cidadão Samba de São Paulo -, mais uma polêmica surgiu quando se pretendeu criar uma data específica para o samba.

“Uma delas atribuía à data em que o compositor Ari Barroso visitara a Bahia ou à data de seu nascimento. Mas até hoje nenhum documento foi encontrado que viesse a confirmar essa versão”, conta o radialista. Segundo Muniz Jr., uma das maiores autoridades no assunto, a data de 2 de dezembro foi reconhecida por um decreto no Rio de Janeiro, no ano de 1962, durante a realização do Primeiro Congresso Nacional do Samba, sob a chancela da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e do Conselho Nacional de Cultura da Ordem dos Músicos do Brasil. Esse evento foi presidido pelo professor Edison Carneiro, tendo como vice-presidentes o compositor Ari Barroso, o imortal Ernesto “Donga” dos Santos, Araci de Almeida, o radialista Henrique Foréis “Almirante” Domingues e demais representantes das entidades, como Alfredo da Rocha Viana Filho (Pixinguinha), Paulo Tapajós, Marilia Batista e também os jornalistas José Ramos Tinhorão, Sergio Cabral, Haroldo Costa e o acima citado J. Muniz Jr., representando a cidade de Santos-SP, além de inúmeras personalidades do mundo do samba.

Na ocasião, o deputado Anésio Frota Aguiar apresentou na Assembleia Legislativa do Estado da Guanabara o Projeto de Lei nº 681, de 19 de dezembro de 1962, que instituía o dia 2 de dezembro como data consagrada ao samba, “visto que nessa data, na época, começavam, por determinação legal, os ensaios das escolas de samba, visando ao Carnaval do ano seguinte”.

 

Claro, cada um com seu sotaque. Onde houve trabalho escravo, houve batuque. Há que ressaltar também a importância da mulher na sua organização e desenvolvimento, contrariando o machismo histórico e resiliente!

Moisés da Rocha - Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Moisés da Rocha - Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Algumas figuras que passaram pela Pequena África de Tia Ciata:

Hilário Jovino (1855-1933) – compositor, dirigente carnavalesco e animador cultural. Nasceu em Pernambuco, foi criado na Bahia e se radicou no Rio de Janeiro, onde foi uma liderança importante da comunidade baiana na Pequena África. Foi também um dos grandes impulsionadores do carnaval carioca, responsável por transformar os ranchos da festa do Dia de Reis em ranchos carnavalescos, dando os passos e o significado da dança do mestre-sala e da porta-bandeira. Os ranchos foram os precursores das escolas de samba.

Hilário Jovino Ferreira - Foto: Autor Desconhecido/Domínio público/Wikimedia Commons

Hilário Jovino Ferreira - Foto: Autor Desconhecido/Domínio público/Wikimedia Commons

Pixinguinha (1897-1973) – famoso saxofonista, flautista, compositor e arranjador carioca, é aclamado como um dos pais da música brasileira. Apesar de morador do subúrbio de Ramos, na zona norte do Rio, ele também foi um frequentador da Praça Onze.

João da Baiana (1887-1974) – compositor, passista, cantor e instrumentista, este pioneiro do samba carioca ganhou o apelido por ser filho de uma das tias baianas da Pequena África, a Tia Perciliana. Foi amigo de infância de Donga, outro sambista pioneiro da Praça Onze.

Foto: Max Vidor/Obra do próprio/CC BY-SA 4.0

João da Baiana - Foto: Max Vidor/Obra do próprio/CC BY-SA 4.0

Plácida dos Santos (c. 1860-c. 1950) – atriz, cantora e dançarina de teatro. Causou furor em Paris em 1889 ao apresentar o maxixe. Uma dança muito popular no Brasil na época, o maxixe foi precursor do samba. Diz-se que o traje de baiana com que Plácida se apresentou em Paris teria sido confeccionado na casa de Tia Ciata.

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