Mulheres têm agora uma data nacional que exalta a sua importância no samba brasileiro

Lei federal instituiu o dia 13 de abril como o Dia Nacional da Mulher Sambista; docentes da USP e personalidades ligadas à arte, à cultura popular e ao samba destacam a importância do ato

 15/04/2024 - Publicado há 6 meses     Atualizado: 19/04/2024 às 13:33

Texto: Antonio Carlos Quinto

Arte: Joyce Tenório*

O Dia Nacional da Mulher Sambista será comemorado no mesmo dia do nascimento de Dona Ivone Lara - Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Natalia Bezerra/Flickr, acervo da família de D. Ivone Lara e reprodução das capas dos álbuns da sambista

O dia 13 de abril será, a partir de agora, celebrado como o Dia Nacional da Mulher Sambista. A data foi instituída por intermédio da Lei nº 14.834, sancionada pelo governo federal e publicada no dia último 5 de abril. O dia homenageia a cantora e compositora carioca Ivone Lara, nascida em 13 de abril de 1921, e que nos deixou em 2018.

Desde Hilária Batista de Almeida, nascida em Santo Amaro, Bahia, em 1854, mais conhecida como Tia Ciata, muitas mulheres como a homenageada Ivone Lara foram se tornando ícones do nosso ritmo mais popular. Vale lembrar que Tia Ciata foi uma das mulheres mais influentes para o surgimento do samba carioca. Ivone Lara, por sua vez, foi a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Escola de Samba Império Serrano, tendo assinado a composição do samba-enredo Os Cinco Bailes da História do Rio, de 1965, ainda hoje listado entre os melhores de todos os tempos.

Nesta reportagem, o Jornal da USP traz opiniões e depoimentos de pessoas ligadas ao samba e à cultura brasileira sobre a importância da data, que dá mais visibilidade e destaque à mulher no samba e na cena cultural brasileira. Uma delas, a professora Renata Amaral, docente convidada do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, considera que a instituição da data, por si só, é bastante protocolar. “Não acredito que infere, necessariamente, em mudanças para as mulheres no samba”, diz. Contudo, ela exalta que a homenagem à Dona Ivone Lara é “merecida”.

Ela destaca que Ivone Lara foi uma visionária! Além de uma artista imensa, autora de clássicos do nosso cancioneiro, “ela teve uma atuação transformadora como enfermeira e assistente social ao lado de Nise da Silveira, em temas contemporâneos como saúde mental, diversidade e equidade social.” Nise da Silveira foi uma médica psiquiatra que implantou um projeto de cuidados humanizados em saúde mental. Morreu no ano de 1999.

Renata Amaral - Foto: Acervo Maracá/Youtube

Na opinião da docente, além de uma data para que a mulher sambista seja, de fato, plenamente reconhecida, ainda há muitos caminhos a trilhar. E entre alguns, um que passe pela desconstrução do “machismo estrutural”. “No imaginário popular o homem sambista é o malandro elegante, boêmio inspirado, enquanto a mulher sambista ainda é a dançarina de pouca roupa”, descreve. Renata cita o compositor Geraldo Pereira: “aquela que mexe, remexe, dá nó nas cadeiras, e deixa a moçada com água na boca’”. Para a professora, ainda é um universo onde a mulher é muito sexualizada, deixando menos espaço para sua atuação em outras frentes.

Mas Renata reconhece que o samba, em sua origem, assim como em muitos gêneros populares, tem uma tradição matriarcal, negra, de terreiro. “Há que se destacar mulheres como Tia Ciata e as muitas mães e ialorixás que sustentaram suas comunidades cozinhando, costurando e cuidando de toda logística, da oralidade, da saúde física e espiritual necessárias para a estruturação e continuidade dessa cultura”, elogia. “Mas as funções de músico e compositor sempre foram masculinas.”

Além de exercer a docência na ECA, Renata também é instrumentista. “Eu atuo como contrabaixista há quase 40 anos. Vejo mudanças lentas e positivas. Mas na música popular, a predominância de instrumentistas e compositores ainda é dos homens”, adverte.

A professora integra projetos musicais, como o coletivo Ponto Br, que reúne músicos considerados “guardiões da nossa cultura tradicional”. Ela também é integrante do grupo A Barca, que nasceu em 1998 de uma reunião de amigos músicos de São Paulo em torno de ideias como viagem, música popular, Brasil e Mário de Andrade.

Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata - Foto: Domínio público
Dona Ivone Lara desfilando pela Escola de Samba Império Serrano
Dona Ivone Lara desfilando pela Império Serrano no Carnaval de 1990 - Foto: Otávio Magalhães/Wikimedia Commons

Histórias e memórias

Ainda na ECA, uma pesquisa de doutorado da pedagoga Maria de Paula Pinheiro analisou o protagonismo das Tias da Portela. Na Roda das Donas do Samba : um estudo sobre histórias, memórias e saberes das Tias do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela é o título da tese de Maria de Paula que se debruça sobre as histórias, as memórias e os saberes das Tias que fizeram e ainda fazem parte da escola.

“O Dia Nacional da Mulher Sambista representa um marco importante para o reconhecimento e a valorização do protagonismo feminino na construção, promoção e difusão da cultura do samba na sociedade brasileira. O fato de a data estar estabelecida no dia de nascimento de Dona Ivone Lara tem uma representatividade e um significado muito importantes”, como destaca Maria de Paula. Ela lembra que a cantora e compositora foi a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba, fato ocorrido em 1965, na Império Serrano. “Ela rompeu o exclusivismo masculino no tradicional segmento das agremiações carnavalescas”, diz a pesquisadora.

Maria de Paula Pinheiro - Foto: Arquivo pessoal

Ao falar de seu estudo na ECA, Maria de Paula ressalta que as Tias cumpriram e cumprem um papel primordial na escola de samba. “São lideranças comunitárias reconhecidas e atuam como guardiãs da memória e mantenedoras dos vínculos grupais, preservando modos de vida e universos culturais, conduzindo os ritos por onde os saberes circulam e são transmitidos entre gerações.”

Na Escola de Samba Portela, que foi o seu universo de pesquisa, Maria de Paula cita que “as Tias sempre exerceram um grande poder de influência no âmbito das comunidades de samba”, conta, destacando as personalidades femininas que estiveram à frente da direção de departamentos, presidência de alas e coordenação de grupos de trabalho na agremiação. Atualmente, Tia Surica (Iranette Ferreira Barcellos) é uma dessas lideranças, atuando como integrante veterana da Velha Guarda da Portela, membro do Conselho Deliberativo e detentora do título de matriarca e do posto de presidente de honra da escola.

Maria de Paula acredita que, a oficialização da data vem coroar a longa trajetória de luta e resistência das mulheres sambistas. “Podemos observar o surgimento de inúmeros grupos, coletivos e rodas de samba formados por mulheres, além de uma crescente produção teórica e acadêmica centrada no protagonismo feminino no mundo do samba”, ressalta a pesquisadora.

Dona Ivone Lara e Clementina de Jesus - Foto: acervo da família de D. Ivone Lara

E por que não todos os dias?

Há 47 anos produzindo e apresentando na Rádio USP o programa O Samba Pede Passagem, o radialista Moisés da Rocha considera a data importante. “Mas o Dia da Mulher Sambista tem de ser todos os dias!”, enfatiza, concordando com a professora Renata de que se trata de “uma data”. “Mas tem seu valor, sim”, pondera ele.

Por todos esses anos, não foram poucas as “mulheres sambistas” que passaram pela programação de Moisés da Rocha. Dentre tantas, ele destaca Beth Carvalho, Alcione, Leci Brandão, Clementina de Jesus e a própria Ivone Lara. “O programa O Samba pede Passagem sempre valorizou a mulher sambista. Até mesmo na descoberta de novas cantoras e compositoras”, destaca. Além das citadas, Moisés lembra ainda de mulheres do samba paulista, como Eliana de Lima e Bernadete, entre outras.

“Apesar de considerar que a mulher tem, sim, seu protagonismo, alguns homens sambistas ainda dificultam as coisas”, lamenta Moisés. Ele conta que ouviu de diversas cantoras sambistas iniciantes declarações e até reclamações de boicotes. “Elas relatam que, em alguns casos, entram com o tom errado da música e por vezes até dificultam apresentações”, conta.

Moisés da Rocha - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“Não foi nada fácil. Nem mesmo para a própria Ivone, que no ano de 1947 precisou usar o nome de um primo para driblar o machismo e conseguir que um samba de sua autoria fosse cantado na escola, onde era proibido mulher compositora”, lembra o radialista.

Mas além de Ivone Lara, Moisés destaca outras “mulheres sambistas”, como Leci Brandão. Atuando como deputada estadual em São Paulo, esta compositora carioca que também integrou a ala de compositores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira é outra referência para o radialista. “Tenho orgulho de ser chamado por ela como ‘padrinho’ e admiro a luta da Leci enquanto sambista e parlamentar”, elogia Moisés.

Gisa Nogueira, Dona Ivone Lara e Leci Brandão, compositoras de samba no Projeto Pixinguinha de 1980 - Foto: Projeto Brasil Memória das Artes/Funarte

Mulher, fundamental na cultura

Leci Brandão - Foto: Renan Katayama/Flickr

Em entrevista ao Jornal da USP, Leci Brandão destacou a importância de termos um governo democrático que entende a mulher como fundamental na cena cultural brasileira. “Estou muito feliz e me sinto evidentemente incluída”, comemorou.

Leci até lembrou suas origens na Mangueira. “A minha avó foi mangueirense. Eu nasci em Madureira na Estrada da Portela, daí minha identificação natural com o samba. Minha caminhada tem as bençãos de Deus e dos orixás!”, acredita a parlamentar.

E foi no Teatro Opinião que Leci Brandão conheceu Ivone Lara. “Dona Ivone participou comigo do Projeto Pixinguinha e percorremos inúmeros estados deste país”, lembra, elogiando a musicalidade fantástica que tinha Ivone Lara. “Ela tinha uma outra qualidade. Ela tocava cavaquinho, coisa que eu não faço”, confidencia Leci.

Para a parlamentar, há uma tendência de a mulher progredir cada vez mais e conquistar mais espaço na cultura nacional. ”Eu quero ver mais grupos de mulheres mostrando suas músicas. Quero a volta dos festivais de música. Eu, por exemplo, me tornei mais conhecida participando de um festival, lá nos anos 1970”, ressalta Leci.

O matriarcado como herança

“Acho muito importante para nós, mulheres, esse reconhecimento. Principalmente muitas de nós, que temos origens humildes e temos nossos pais e avós como descendentes de escravos”, disse à reportagem do Jornal da USP Selma Candeia. Ela é filha de Antonio Candeia Filho, o Candeia, compositor e sambista da Escola de Samba Portela.

Saudosa, Selma se lembra das reuniões que aconteciam na casa de sua família. “Eram rodas de samba com compositores e cantores, em sua maioria homens. As mulheres sempre exercendo seu papel na retaguarda. Seja no preparo da feijoada, confeccionando suas roupas”, conta. Mas, aos poucos, como diz “essa mulher sambista”, as coisas vão mudando.

Selma é uma das integrantes do grupo Matriarcas do Samba. “Somos herdeiras do samba”, afirma ela. Junto com Nilcemar Nogueira, neta de Cartola, Geisa Keti, filha de Zé Keti, e Vera de Jesus, neta de Clementina de Jesus, são descendentes de uma linhagem de sambistas e inspiram-se nas obras de seus pais e avós, em suas lutas e conquistas. Antes de se unir às Matriarcas do Samba, Selma também fez parte de outro projeto semelhante, intitulado As Herdeiras do Samba. “Éramos quatro filhas de compositores da Portela”, conta a sambista.

Selma Candeia - Foto: Diego Mendes

Nas apresentações do grupo, além de cantar e sambar, como descreve Selma, elas contam histórias. “Fazemos um trabalho de preservação do nome de nossos antepassados e do samba”, ressalta ela, lembrando que em muitas das histórias ela teve participação, ainda quando criança.

Matriarcas do Samba na palma da mão: Geisa Keti, Nilcemar Nogueira, Vera de Jesus e Selma Candeia - Foto: Diego Mendes

Orgulhosa, Selma lembra de ter conhecido numa das rodas de samba a cantora e compositora Ivone Lara. “Eu devia ter uns 8 ou 9 anos e cheguei a presenciar aquela linda voz. Graças a Deus fui afortunada por ter visto tantos mestres e a própria Ivone Lara”, conta.

Contudo, Selma lamenta que a cultura machista ainda exista nas quadras das escolas de samba. “Trata-se de uma cultura que, infelizmente, ainda permanece”, lamenta. Por isso ela acredita que o momento é de uma valorização. “Os tempos mudaram! É preciso trazer respeito à mulher sambista”, diz Selma.

*Estagiária sob supervisão de Simone Gomes de Sá


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