Relatório traz realidades de usuários que vivem nas ruas da Cracolândia, na capital paulista

Pesquisadores da USP e da Fundação Getúlio Vargas conversaram com 90 indivíduos entre julho e agosto de 2022. Mais de 90% dos que se dispuseram a falar relataram fazer uso de crack. A maioria (69%) dorme nas ruas e quase 40% disseram que estão na região por vontade própria

 Publicado: 25/10/2024 às 17:12
Segundo o relatório, as políticas públicas atuais são insuficientes no enfrentamento desse problema – Foto: Luca Meola/Extraída do relatório

O Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP, o Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getúlio Vargas (NEB/FGV) e o Grupo de Estudos (in)disciplinares do corpo e do território (Cóccix) publicaram nesta sexta-feira (25) o relatório A ‘Cracolândia’ pelos usuários: como as pessoas que vivem nas ruas do território percebem as políticas públicas . O documento revela a ineficácia das políticas públicas atuais, violência policial e expectativas frustradas das pessoas que vivem na Cracolândia, na região central da capital paulista, em relação ao poder público.

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Os pesquisadores conversaram com 90 indivíduos entre julho e agosto de 2022. Mais de 80% dos que aceitaram dar entrevista são homens negros entre 30 e 49 anos. A amostra não é, portanto, representativa para toda a população da Cracolândia, mas joga uma luz sobre a realidade vivida por usuários de drogas e pessoas em situação de rua na região.

Mais de 90% dos indivíduos que falaram com os pesquisadores relataram fazer uso de crack (os demais relataram uso regular de bebidas alcoólicas). A maioria (69%) dorme nas ruas e quase 40% disseram que estão na região por vontade própria – consideram a Cracolândia sua casa ou porque se sentem bem ali. Apesar das condições adversas, metade dos participantes mantém contato com a família.

A pesquisa também identifica um esforço dos indivíduos para gerar renda e buscar autonomia: mais de dois terços dos entrevistados realizam atividades produtivas regularmente, como reciclagem e venda de objetos.

 

Internações recorrentes

Sete em cada 10 entrevistados já foram internados pelo menos uma vez – há casos de usuários de crack que chegaram a se internar mais de 30 vezes. A alta taxa de reinternação, no entanto, denota falhas no sistema de tratamento atual. Muitos veem a internação como um local temporário para descanso e recuperação física, não como uma solução efetiva para o uso problemático de drogas.

Amanda Gabriela Jesus Amparo – Foto: CV Lattes

“Os dados mostram uma relevante aderência das pessoas às internações, contrariando um discurso geral que diz que as pessoas não querem se tratar”, diz Amanda Gabriela Amparo, do Cóccix, uma das autoras do trabalho.

As principais razões para o abandono das internações incluem o fim do prazo sem suporte pós-tratamento, abstinência forçada e más condições nas instituições, que muitas vezes se assemelham a prisões. Essa realidade evidencia a necessidade de repensar as abordagens de tratamento, considerando as perspectivas e necessidades dos próprios usuários.

“O aumento da presença policial e os esforços para trazer a sede do governo estadual ao centro podem agravar ainda mais a situação, afastando qualquer perspectiva de solução”, diz Giordano Magri, pesquisador da FGV que coordenou o estudo.

A violência policial surge como um fator agravante na vida dos moradores da Cracolândia. A Inspetoria de Operações Especiais (Iope) da Guarda Civil Metropolitana é destacada como a força mais agressiva nos depoimentos da pesquisa. “A gente não pode dormir, nem comer. Somos parados pela operação, aí temos que correr”, relata uma das entrevistadas, destacando o clima de constante medo e insegurança.

Além disso, o fechamento de serviços de cuidado e o aumento da presença policial têm intensificado as tensões na região. A política de dispersão adotada a partir de 2022 resultou no espalhamento das cenas de uso de drogas pela cidade, amplificando os problemas e gerando impactos negativos para os usuários e para a comunidade local. O tema tem aparecido também no debate eleitoral do pleito de São Paulo. O segundo turno acontece no próximo dia 27.

As agressões causam traumas físicos e psicológicos, além de alimentar o estigma social. Isso contribui para a marginalização e dificulta ainda mais o acesso a serviços de saúde e assistência social. “Eles acham que com isso estão aliviando alguma coisa? Não, estão prejudicando segundos e terceiros”, afirma um dos entrevistados.

Giordano Morangueira Magri – Foto: CV Lattes

Segundo Magri, da FGV, o futuro dessas pessoas é incerto. “Embora os dados apontem para a necessidade de expandir os serviços, diminuir a violência e criar alternativas para reduzir a vulnerabilidade desse público, as políticas atuais seguem na direção oposta”, diz.

Agressões físicas, morais e sociais culminam nas cenas generalizadas de violência como os arrastões e tantas outras que vemos ser publicadas nas mídias. “E, na contramão de um modelo de intervenção positiva, os tratamentos de saúde e de assistência social não têm conseguido impactar a realidade das pessoas”, diz Amanda Gabriela Amparo, da USP.

A inadequação dos serviços ofertados e a violência constante resultam em uma profunda falta de expectativa em relação ao poder público. Muitos entrevistados expressam desilusão e desconfiança, sentindo-se invisíveis e excluídos das decisões que afetam diretamente suas vidas. Para os autores do trabalho, a transformação da realidade na Cracolândia não será alcançada por meio de ações isoladas ou repressivas, mas por meio de uma abordagem holística que coloque o ser humano no centro das políticas.

Apesar do cenário desolador, os entrevistados apresentam soluções claras para os problemas enfrentados. A necessidade de políticas integradas é enfatizada, com destaque para oportunidades de trabalho, acesso à moradia digna e cuidados de saúde efetivos. “Um bom tratamento seria ter uma cooperativa para todos terem uma ocupação de mente”, sugere um entrevistado, ressaltando a importância de atividades que promovam inclusão social e autonomia.

Com informações da Bori Agência

Mais informações com Giordano Magri (coordenador do estudo): (11) 94121-0088 ou pelo e-mail gmmagri@gmail.com

 


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