Privatização dos serviços de saúde precarizou tratamentos na região da Cracolândia

Pesquisa desenvolvida na Cracolândia identifica características da região, que sofre com problemas de saúde pública e convive com a desumanização de seus frequentadores; falta de continuidade das políticas públicas é um dos maiores empecilhos

Foto: Reprodução/Agência Brasil

 14/12/2022 - Publicado há 1 ano

Texto: Gustavo Roberto da Silva

Arte: Adrielly Kilryann

Há uma dificuldade em definir o que de fato é a Cracolândia. Presente há pelo menos 30 anos na região central da cidade de São Paulo, o fluxo de pessoas é tratado muitas vezes como uma aglomeração de usuários de crack. Uma pesquisa desenvolvida na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, em 2021, mostra as diferentes faces do território, e amplia uma discussão sobre um grupo de pessoas que carrega muita estigmatização.

“A Cracolândia é o lugar onde essas pessoas estão”, afirma Paulo Victor de Figueredo Nogueira, pesquisador e cientista social que desenvolveu a dissertação de mestrado intitulada Profissionais da saúde e militantes na Cracolândia paulistana: uma etnografia. Mas afinal, quem são essas pessoas? O pesquisador relata dificuldade em definir o que é a Cracolândia, e quem são as pessoas que estão nesse espaço.

Eu tento deixar na minha dissertação o mais neutro possível, porque já tem tanto estigma, como usuários, drogados, vulneráveis, então eu me refiro às pessoas como frequentadores da Cracolândia. São muitas pessoas, mas elas têm em comum um processo que as levou à miséria. Miséria material, miséria de laços familiares e sociais, miséria espiritual, miséria de não ter um atendimento de saúde, de não ter acesso às políticas públicas. Então onde essas pessoas que foram levadas à miséria, por processos de vida e processos sociais, se encontram é a Cracolândia”, diz.

Paulo Victor Figueredo Nogueira - Foto: Arquivo pessoal

Paulo Victor Figueredo Nogueira - Foto: Arquivo pessoal

Nogueira relata que, apesar desse grupo de pessoas — a que o pesquisador se refere como frequentadores da Cracolândia — ser marcado pelo estigma do uso de crack, a droga é apenas mais um dos diversos elementos que estão presentes para caracterizar a Cracolândia. “O álcool é usado por mais gente que o crack na Cracolândia, e ninguém diz que é ‘alcoolândia’ ali. Então Cracolândia também é uma maneira de estigmatizar”, ressalta.

No entanto, o pesquisador também aponta que muitos dos frequentadores da Cracolândia se apropriam de alguns dos estigmas como forma de resistência. “Eles subvertem como potência de luta, como potência de existência. Dizem: ‘Sim, a gente é da Craco’. Então tem essa disputa por esse pertencimento ao lugar”, conta.

Dinâmicas territoriais do Centro

A ausência de segurança pública em favor da população de rua é apontada por Nogueira como um dos principais fatores que levaram as pessoas à concentração na região, impulsionada por chacinas e massacres com participação da polícia. “No começo dos anos 2000, quando essas pessoas começam a se concentrar, fica muito mais difícil atentar contra elas em grandes grupos reunidos. Então acho que elas percebem essa questão de se fortalecer através dessa união”, afirma.

Foi identificado pelo pesquisador, por meio de outras etnografias em diferentes periferias de São Paulo, que alguns bairros tomados por facções criminosas também promoveram uma espécie de expulsão dos usuários de crack. “É uma dinâmica de colocar essas pessoas que usam crack no centro de São Paulo”, conta.

Nogueira ressalta que também há grande número de pessoas oriundas do sistema prisional, que não conseguem encontrar espaço em outros ambientes, e sem nenhuma forma de ganhar dinheiro vão para o Centro em busca do mínimo de infraestrutura e melhores serviços de saúde, que segundo o pesquisador são cada vez mais raros. Já a mudança no local da concentração de frequentadores, que acontece atualmente, é atribuída à especulação imobiliária.

Painel de lambe-lambe homenageando MC Kawex, no prédio anexo ao terreno ocupado pelo Teatro de Conteiner Mugunzá, onde ficava a “base” da Vigília Molhada. Página 43. - Foto: Paulo Nogueira

Há uma série de imóveis que a prefeitura tem interesse em derrubar para fazer mais PPPs (Parcerias Público-Privadas), o Hospital Pérola Byington foi feito ali, então há uma dinâmica de especulação imobiliária juntando o Estado e empresas de construção, que tem uma dinâmica forte de mobilização daqueles corpos em regiões do centro. Então quando a região já foi teoricamente a Cracolândia, o fluxo de pessoas já cumpriu o seu papel de baratear o metro quadrado para que a prefeitura desaproprie os imóveis e faça parcerias de projetos junto à iniciativa privada para fazer isso virar lucro”, afirma Nogueira.

Observação participante

O pesquisador conta que o método da etnografia é mais comum na antropologia, e que o fato de seu orientador, o professor Rubens de Camargo Ferreira Adorno, ser antropólogo o auxiliou a se apropriar do método etnográfico no contexto da saúde pública. “Ele já tinha feito trabalhos na Cracolândia e foi isso que me interessou para ser orientado por ele”, diz. A base da etnografia é o trabalho de campo, com contato direto no dia a dia do grupo social analisado.

A definição do objeto de estudo passou por um processo antes de ser completamente definido. “Meu objetivo inicial era principalmente investigar quais eram as motivações, falas e fazeres dos profissionais de saúde que atuavam na ponta. Então me propus a seguir os profissionais de saúde do Consultório na Rua. Consegui entrar em contato com eles, comecei a ir a campo sozinho e tentar fazer contatos”, relata. Nas tentativas de iniciar relações com os profissionais, Nogueira percebeu que era mais bem recebido por pessoas ligadas a movimentos sociais.

Então eu já comecei a dividir meu objeto de estudo. Comecei a ver que a entrada possível era através da militância. Como concordava com muitas das causas, com o tempo eu passei a fazer parte dessa militância. A antropologia fala de observação participante, e isso se dá na prática. Conforme você vai adentrando o campo, se você não participa muitos caminhos vão estar fechados para você.”

Em razão da dificuldade burocrática de se aproximar dos profissionais de saúde do Consultório na Rua, o pesquisador precisou buscar outros caminhos de aproximação. Os movimentos sociais foram importantes nesse contexto, para auxiliar no contato com outras pessoas que já atuaram como agentes de saúde no território. A dissertação acompanha os dois grupos e conta com capítulos dedicados ao dia a dia dos profissionais de saúde no território, e capítulos dedicados à atuação da militância social na região.

Segundo o pesquisador, a militância da região é constituída por trabalhadores que atuaram no território, e muitos foram perseguidos politicamente na mudança de gestão da Prefeitura de São Paulo no ano de 2017.  “São muitos militantes da política de redução de danos, que pautava o programa De Braços Abertos. Além dos profissionais de saúde, tem jornalistas, advogados, sociólogos, etc. É uma mescla de profissionais que convivem com a região e os próprios frequentadores do território que passaram pelas políticas públicas propostas naquela área ”, afirma.

Naquele ano, houve a transição do governo municipal de Fernando Haddad (2013-2016) para o de João Dória (2017-2018) e o programa social vigente De Braços Abertos, instituído na gestão Haddad, passou a ser desarticulado e precarizado, em favor de um novo programa batizado de Redenção. 
 
Retrato deste pesquisador com equipamentos de EPI improvisados durante a distribuição de marmitas no Teatro Mugunzá. Página 100 - Foto: João Leoci
Retrato deste pesquisador com equipamentos de EPI improvisados durante a distribuição de marmitas no Teatro Mugunzá. Página 100 - Foto: João Leoci

Problema eleitoreiro

Durante o período de campanha das eleições municipais paulistanas, e até mesmo nas eleições gerais, quando o Estado de São Paulo elege seu governador, o problema de saúde pública da Cracolândia recebe novas propostas para uma espécie de solução. Para Nogueira, um dos principais problemas para que nenhum programa de política pública consiga se consolidar é a falta de continuidade.

Um dos problemas é a falta de continuidade por conveniências políticas. Uma política pública que não tem continuidade está fadada ao fracasso. Ainda mais nesse contexto em que as pessoas já têm experiências muito ruins com o Estado. O Estado, para essas pessoas, normalmente vem pela mão da repressão. Então quando elas entram em uma política pública que é descontinuada de alguma forma, é muito difícil você recuperar a confiança dessa pessoa no Estado”, afirma.

O pesquisador identifica que falta diálogo do Estado com as pessoas, para compreender quais são as reivindicações. Segundo ele, políticas habitacionais estão entre as principais pautas pelas quais a população local luta. Exemplos internacionais de programas habitacionais são citados por Nogueira, como o Housing First, no Canadá, que prioriza a moradia como um primeiro passo de assistência social. “Toda pessoa tem que ter direito a um lar, a um abrigo para dormir. Esse tipo de programa é comprovadamente barato e funciona para as pessoas. Não necessariamente para elas deixarem de usar drogas, mas para terem menos doenças, para terem uma vida mais digna, para conseguirem voltar a ter laços sociais mais orgânicos, para conseguirem um trabalho”, diz.

A violência e perseguição são outros problemas com que os profissionais de saúde que atuam no local convivem, e foram exemplificadas pelo pesquisador, que comentou o caso de um psiquiatra chamado Flávio Falcone. O médico se veste de palhaço para levar cuidados à população local e foi indiciado duas vezes pela Polícia Civil.

Trabalho de Raphael Escobar, tinta sobre pano, exposta na fachada de um prédio adjunto ao Teatro de Contêiner Mugunzá. 103 - Foto: Paulo Pereira
Trabalho de Raphael Escobar, tinta sobre pano, exposta na fachada de um prédio adjunto ao Teatro de Contêiner Mugunzá. 103 - Foto: Paulo Pereira

Falcone participou do programa De Braços Abertos, e também é um adepto das estratégias de redução de danos. Para Nogueira, essas abordagens começaram a ganhar força em relação às drogas no contexto da epidemia de aids, ainda na década de 1990. Segundo o pesquisador, as drogas injetáveis por seringas eram muito comuns, e naquele período acabaram espalhando uma série de doenças, não necessariamente relacionadas ao uso de drogas.

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“Eles (profissionais de saúde) começam a ter uma certa visão de que o jeito que as drogas estão sendo usadas está causando mais mal do que deveria. Então começam, por exemplo, programas de distribuição de seringas limpas, para que as pessoas não se infectem de aids, que matava em um ano, enquanto o uso de heroína talvez nunca mate, ou mate em dez anos”, conta o pesquisador.

Para o cientista social, uma questão central é reconhecer que, independente dos estigmas que sejam colocados sob os usuários de drogas, qualquer pessoa tem direito de ser cuidada. Reconhecendo os direitos básicos, Nogueira defende que um plano de cuidado precisa ser planejado junto da pessoa que receberá a assistência, para compreender que tipo de assistência ela considera necessária.

O pesquisador conta que muitas pessoas que participaram do programa De Braços Abertos tiveram melhora significativa, e hoje atuam no território ajudando outras pessoas. “A vantagem de programas que são baseados em redução de danos é de ouvir o que as pessoas acham que é certo ou errado. Um programa que é desenhado num gabinete de política pública e é colocado ‘goela abaixo’ na vida dessas pessoas tem uma chance muito pequena de dar certo”, ressalta.

O antropólogo questiona o fato de outras drogas, como o álcool, não serem combatidas pelo Estado. “O álcool é a droga mais usada do País, a que mais dá dinheiro e a que mais causa problemas, tanto de internação de saúde quanto para outras pessoas que não usam. Por que não se fala de uma epidemia de álcool? O problema não é exatamente a droga, mas sim políticas públicas para lidar com a miséria.”

Gestões privadas

Segundo o pesquisador, ainda nos anos 1990, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), a gestão pública de saúde começou a ter as primeiras formas de gestão privada por meio das Organizações Sociais de Saúde (OSS). Nogueira afirma que no processo de mudança de gestão — de pública para privada —, a Prefeitura passa todos os equipamentos e toda a responsabilidade sobre os profissionais para essas organizações.

A gestão cada vez mais privatizada dos equipamentos e dos profissionais de saúde foi uma aposta que não deu certo. Ela precariza os profissionais, desde os vínculos deles com o emprego, porque agora eles podem ser demitidos a qualquer hora — e muitos foram demitidos por perseguição política, ou porque não concordavam mais com o tipo de política que podiam oferecer —, até o vínculo com as pessoas que eles estão atendendo”, ressalta.

Para Nogueira, um dos problemas causados pelas gestões privadas é justamente a dificuldade que os trabalhadores têm para se organizar e lutar pelas suas visões em relação à saúde. Além disso, o excessivo enfoque em metas quantitativas prejudica a qualidade do atendimento. “Têm que bater 50 atendimentos por semana, mas aquela meta não significa necessariamente uma melhora na vida de alguém, é só um número. Isso causa um sofrimento enorme nos profissionais de saúde. Nenhum dos profissionais com quem falei deixou de narrar esse sofrimento, especialmente pela falta de apoio e cuidado do poder público”, diz.

O pesquisador atestou, durante o período dedicado ao mestrado (2018-2021), que os equipamentos de saúde e assistência social foram deixando a região, e o Estado se fez presente cada vez mais por meio da polícia.

A lógica da militarização e do controle desses corpos é implementada cada vez mais. Apesar dos discursos de quase todo o espectro político dizer que é um problema de saúde pública, tem muito pouco relacionado à saúde pública sendo efetivado. Cada vez mais vai para a lógica da securitização e da repressão dessas pessoas”, afirma.

Mais informações: paulovnogueira@usp.br 


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