No Brasil marcado por desigualdades, há pessoas que parecem invisíveis, mas têm uma atuação indispensável para o bem-estar de suas comunidades. É o caso de quatro mulheres negras cujas histórias de vida a pesquisadora Claudia Adão contou em sua tese de doutorado, intitulada Territórios de vida: resistências, existências e produção de cuidado por mulheres negras. Claudia defendeu a tese na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP em 2023, sob orientação do professor Caio Santo Amore.
Helena Caroba, Edi Cardoso, Daiana Ferreira e Tia Thereza são moradoras da zona leste de São Paulo que têm em comum a dedicação a projetos sociais e iniciativas que transformam vidas. Seja na agricultura, na cultura, no cuidado ou na espiritualidade, suas trajetórias revelam resistências cotidianas e a potência do cuidado como forma de existir e resistir. Segundo Claudia, elas representam uma força coletiva que, mesmo diante de adversidades, resgata saberes, constrói comunidades e inspira futuros mais justos.
A pesquisadora afirma que, por meio de sua atuação comunitária, essas mulheres “fazem cidade”. O que Claudia chama de “fazer cidade” vai muito além das construções que vemos, mas se dá também nas relações entre as pessoas, na criação de redes de resistência e transformação.
“Se São Paulo é dessa forma, foi em cima do suor, do sangue e dos corpos de pessoas negras e indígenas, que foram expulsas dos seus territórios. Então, eu estou dizendo que essa cidade foi construída em cima da contribuição da vida dessas pessoas. Por outro lado, estou dizendo que, se a gente olhar para as periferias, o que faz também a cidade são essas relações. Essas redes de sociabilidade, essas comunidades”, explica Claudia.
Na tese, a pesquisadora destaca a importância de reconhecer essas lideranças invisibilizadas e valorizar suas contribuições à construção de um país mais solidário e equitativo. A seguir, o Jornal da USP conta as histórias de Daiana, Edi, Helena e Tia Thereza.
Daiana Ferreira
Mulher negra natural de São Paulo, Daiana Ferreira por toda sua vida se envolveu em projetos sociais de fortalecimento à comunidade. Quando foi entrevistada por Claudia, Daiana trabalhava como educadora no projeto de educação ambiental Varre Vila, uma iniciativa de pessoas da comunidade Vila da Nossa Senhora Aparecida, em Ermelino Matarazzo.
O primeiro contato de Daiana com o cuidado coletivo aconteceu em uma situação muito difícil de sua infância. Sua família morava em uma casa construída por seu pai em um território de ocupação. Quando a casa estava praticamente pronta, chegou uma ordem de despejo e todas as moradias daquela área foram demolidas.
“Tem uma cena quando a minha casa é demolida, aquilo ali me marcou muito. Eu tinha seis ou sete anos de idade e a minha casa foi a penúltima casa a ser derrubada. Meu pai tinha acabado de botar a laje e conforme as outras casas iam sendo derrubadas, as pessoas que estavam tendo as suas casas derrubadas estavam ajudando meu pai e minha mãe a tirar as vigas e lajotas, que são as vigas e lajotas da casa em que moro hoje. Então, conviver com essa solidariedade, com esse cuidado entre as pessoas, entender o que é ser comunidade, ali começa a brotar em mim esse sentimento”, conta Daiana, com lágrimas nos olhos.
Formada em serviço social aos 30 anos, ela confessa ter começado a entender questões como racismo e ancestralidade apenas após seu ingresso no projeto Varre Vila. Foi lá que ela conheceu a Frente Democrática Ermelino Matarazzo, onde teve oportunidade de aprender sobre sua identidade como mulher negra. A Frente leva para dentro das comunidades, por meio de roda de conversas e saraus, discussões que muitas vezes permeiam apenas os ambientes acadêmicos.
“Foi um dos projetos mais bonitos. A ideia era chamar sempre alguém da academia e alguém da ‘quebrada’, para ter esse contraponto. Escolhíamos um tema, e o objetivo era entender como aquele tema era trazido para a galera da universidade e como era visto pela galera da quebrada”, explica Daiana.
Apesar de atualmente Daiana não fazer mais parte da Frente Democrática nem do projeto Varre Vila, ela continua trabalhando em prol da comunidade no Serviço de Proteção a Crianças e Adolescentes e Vítimas de Violência (SPVV). Daiana também chegou a ser eleita conselheira tutelar em 2023, porém não conseguiu assumir o mandato. Esta questão segue em processo judicial.
Edi Cardoso
Edi Cardoso é atriz, doula e fisioterapeuta, natural de São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo. Ela entende sua atuação nessas diferentes atividades como parte de sua ancestralidade. Sua história na saúde está intimamente ligada à arte e à sua participação em projetos comunitários. “O trânsito entre arte e saúde sempre esteve presente nessa minha trajetória de atriz e de fisioterapeuta. Então, eu não consigo ver esses saberes separados”, comenta Edi.
Formada na Escola Livre de Teatro de Santo André, Edi entendeu a carência do cuidado de corpos femininos na periferia a partir de seu trabalho como atriz. Acostumada desde pequena às atividades corporais como o balé e o teatro, ela queria saber como o conhecimento sobre o funcionamento do corpo humano poderia ser complementar à arte. Foi por esse motivo que cursou fisioterapia, mas, uma vez dentro do curso, Edi acabou despertando grande interesse nas áreas da saúde coletiva e saúde da mulher.
Atuando com a Cia. do Miolo, uma companhia paulistana de teatro de rua, ela levou ao público da região da Penha espetáculos e rodas de conversa sobre os temas do cuidado da mulher e da população pobre. A recepção das comunidades foi o que a motivou a fazer a especialização em saúde da mulher. A combinação de arte com saúde a levou para a doulagem.
A doula é a profissional que ampara a gestante durante e depois da gestação. Não necessariamente precisa ser formada na área da saúde, pois está mais conectada com as práticas das antigas parteiras. A doulagem e o cuidado obstétrico foram por muito tempo transmitidos de forma hereditária em comunidades negras, sem o estudo formal na academia.
“Quando a gente olha para o passado, como era a obstetrícia, ele era construído muito por mãos femininas. Um saber que ia passando de uma para outra, das mais velhas para as mais novas. Depois que o parto passa a ser hospitalar, ele acaba sendo distanciado desses saberes. Então, quando eu olho para a doulagem, também é esse interesse de retomar esse espaço. De fazer valer também esse saber que é das linhas ancestrais, de mulheres que vieram antes da gente. Inclusive, para que a gente consiga a partir desse olhar elaborar estratégias para diminuir desigualdades, violências que corpos como o meu, de mulheres negras, ainda sofrem nos sistemas de saúde”, explica a atriz e fisioterapeuta.
Helena Caroba
A agricultora baiana Maria Helena Caroba é uma das fundadoras do mundialmente premiado Mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana). Trata-se de um grupo de mulheres nordestinas que trabalham como agricultoras no Viveiro Escola União de Vila Nova, localizado em São Miguel Paulista.
Filha e neta de agricultores, Helena aprendeu com sua mãe a tradição da agricultura, apaixonando-se pelo cultivo ainda criança. Helena veio para São Paulo aos 18 anos, após a morte de seu pai. O objetivo era trabalhar como babá para ajudar sua mãe financeiramente. Apesar de não trabalhar com agricultura nessa época, Helena sempre cultivava vasos por sua casa. Foi esse hábito que fez com que alguns vizinhos a aconselhassem a participar de projetos sociais de cultivo.
Helena se reconectou com a agricultura nesses projetos. Ela relata que, na época, passava a maior parte do dia cultivando em projetos sociais da Zona Leste, pois encontrava refúgio de situações difíceis que vivia em casa com os filhos e o marido. Ao se encontrar com outras mulheres nos espaços de cultivo, surgiu a ideia da formação de um grupo, que foi chamado de Mulheres do GAU. A iniciativa cresceu e ficou famosa em várias partes do País e até mesmo fora dele. O grupo cultivava e doava sua produção para escolas e projetos sociais. Posteriormente, parte da colheita começou a ser vendida, o que possibilitou às Mulheres do GAU se sustentarem do trabalho na horta.
Helena saiu das Mulheres do GAU depois de 15 anos, sentindo que era o momento de experimentar novos ares. Há pouco mais de um ano, ela trabalha em um projeto ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), no qual recebe ajuda de estudantes bolsistas para fazer uma horta próxima ao campus da universidade em Itaquera.
Helena relata sentir no cultivo parte da sua espiritualidade e vê na ajuda comunitária uma forma de conexão com seu passado familiar. “Eu sinto que minha mãe era aquilo ali, veio da minha avó. E o amor pela semente, gente, eu ouvia minha mãe falar das melhores sementes! Porque o avô dela fazia isso, a mãe dela fazia isso”, conta a agricultora.
Tia Thereza
Thereza Marcondes Costa, mais conhecida como Tia Thereza, foi benzedeira do Templo de Umbanda Pai Xangô e Vovó Luiza, localizado na Zona Leste, e uma figura muito ativa na Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha. Reconhecida como uma referência comunitária, Tia Thereza utilizava suas práticas espirituais não apenas como um ato de fé, mas como um meio de oferecer suporte às pessoas que enfrentavam dificuldades diversas, desde questões de saúde até conflitos familiares.
Como benzedeira, sua atuação era baseada em rituais tradicionais que ajudavam a aliviar dores físicas e emocionais. Práticas que, muitas vezes, preenchiam lacunas deixadas pelo sistema público de saúde. O espaço de seu templo e o de sua própria casa frequentemente serviam como refúgio para os moradores da comunidade. Durante períodos de crise, como enchentes ou momentos de tensão social, Tia Thereza mobilizava a ajuda necessária para atender aqueles mais vulneráveis.
Segundo a pesquisadora Claudia Adão, Tia Thereza tinha uma visão clara sobre o impacto de sua atuação, para além de suas ações imediatas. Para ela, a prática da benzedeira era também uma forma de resgatar conhecimentos tradicionais passados entre gerações, principalmente dentro das comunidades negras. Esse saber ancestral, segundo ela, tinha o potencial de fortalecer os laços comunitários e oferecer soluções práticas em contextos de desigualdade e exclusão.
Entre as mulheres retratadas na tese de doutorado, Tia Thereza foi a única que a pesquisadora não conseguiu entrevistar pessoalmente. Ela morreu aos 92 anos em 6 de março de 2022, três dias antes da data marcada para a entrevista. Tia Thereza deixou uma marca significativa na sua comunidade, onde seu trabalho continua sendo lembrado como um exemplo de como a espiritualidade e a ação coletiva podem transformar vidas.
*Estagiário sob supervisão de Silvana Salles