Livro traz, em poemas, memórias e ancestralidades do território indígena Kaingang

Obra poética inspirada por descoberta de ascendência indígena do próprio autor aborda a invasão das terras indígenas no sudoeste do Paraná

 07/11/2024 - Publicado há 2 meses
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Imagem: Reprodução da capa do livro Retorno ao Ventre
Retorno ao Ventre – Mỹnh fi nugror to vẽsikã kãtĩ é uma obra bilíngue que resgata a resistência dos indígenas Kaingang a partir de pesquisa histórica e da memória familiar – Foto: Divulgação/Editora Elefante

Apesar do Paraná ainda ser visto como um estado europeizado, a realidade que o escritor e jornalista Jr. Bellé apresenta nas páginas de seu livro Retorno ao Ventre – Mỹnh fi nugror to vẽsikã kãtĩ, é outra. Lançada pela Editora Elefante, a obra resgata a história dos povos indígenas do sudoeste do estado e o processo de colonização e invasão de seus territórios, no início do século 20. Os poemas reúnem memória e ficção para contar os desdobramentos da primeira expedição da República na região, onde se localiza o território indígena Kaingang.

O autor, que é mestre em Estudos Culturais pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, retrata, ao longo de 25 poemas, a resistência dos indígenas frente à marcha para o oeste, ocupação violenta das terras dos povos originários. 

Memória familiar

Nascido no Paraná, foi a partir de um telefonema de sua Tia Pedrolina que o pesquisador descobriu uma história familiar até então desconhecida, mas comum a diversos brasileiros. Seu bisavô era um bugreiro alemão, militar contratado para dizimar indígenas, e sua bisavó, uma criança indígena, provavelmente da etnia Kaingang, capturada para gerar filhos. 

Imagem: Homem branco, cabelos lisos e castanhos à altura dos ombros e usando barba
Jr. Bellé – Foto: Caio Mazzilli/Cedida pelo poeta

Bellé conta que ao investigar suas origens se deparou com um abismo de informações, pois não havia registros sobre sua ancestralidade indígena. Para contornar essa ausência, o poeta mistura pesquisa e ficção, inspirando-se em pessoas de sua própria família. Além de Pedrolina, que está presente na obra como uma das protagonistas, outros familiares fazem parte do enredo. O livro também apresenta figuras históricas, como é o caso de José Ozório, capitão do Exército.

“Os documentos da família não me levaram a lugar nenhum. Então, eu comecei a pesquisar os locais onde meus bisavós nasceram. Alguns deles vinham do noroeste do Rio Grande do Sul, alguns já estavam no sudoeste do Paraná. Esses territórios são territórios de povos indígenas. Ali tem os kaingang, os xokleng e, na parte central do estado, têm os xetá, os guarani mbyá, os guarani kaiowá. Eu comecei a entender de onde eles vinham e quais eram os aldeamentos indígenas que estavam mais próximos. Dentro da perspectiva geográfica, entendi que muito provavelmente essa parente indígena era kaingang”, explica o poeta.

Durante a pesquisa para a escrita da obra, o jornalista procurou documentos históricos no Museu dos Povos Indígenas do Rio de Janeiro e no Portal da Legislação Histórica do Governo Federal. Como resultado dessa busca, algumas páginas contêm os registros encontrados, como uma carta de José Ozório sobre a primeira expedição militar ao sudoeste do Paraná. 

Imagem: Foto do livro aberto com suas páginas verdes e azuis
O livro possui 25 poemas que constroem uma narrativa da ancestralidade Kaingang – Foto: Divulgação/Editora Elefante

Versos em kaingang

O livro é uma obra bilíngue. Todos os poemas foram traduzidos para a língua kaingang por André Caetano, professor e liderança da terra indígena de Serrinha, no Rio Grande do Sul. Lado a lado, os poemas em português foram impressos na cor azul e em kaingang na cor verde.

Imagem: Homem branco usando um grande cocar indígena e trajando camisa verde
André Caetano – Foto: Arquivo Pessoal

O título Retorno ao Ventre vem da ideia de que “o personagem está retomando uma ancestralidade, então um retorno ao ventre materno, a ancestralidade que vem da sua mãe e, especialmente, um retorno ao ventre da terra, porque o livro fala sobre ocupação e retomada de território”, diz Bellé. A segunda parte do nome é a tradução para a língua kaingang, em que o pesquisador e o tradutor optaram por usar a palavra “ventre” em referência ao território. “É o território onde eu nasci, é uma retomada do entendimento desse lugar como um lugar ocupado por populações indígenas e não simplesmente por colonos e descendentes de europeus”, complementa o autor.

Inicialmente, a obra contava com apenas algumas palavras escritas em kaingang, até que Caetano, responsável pela revisão técnica do livro, sugeriu a tradução completa do livro. A língua possui cinco dialetos, então existem variações dependendo da região onde é falada. A tradução se baseou no kaingang falado na terra indígena do revisor, que dá aulas on-line do idioma e também ensina na Escola Estadual Indígena de Ensino Médio Fág Kavá.

“A obra dá visibilidade para a língua kaingang porque ela não é muito vista. Então, é importante resgatar nossa identidade, como a gente fala. A língua kaingang é a identidade do nosso povo”, enfatiza Caetano.

Diálogo com o presente

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Ao falar da história ancestral dos kaingang, os poemas estabelecem conexões com o presente. “O contato com o presente é intenso porque têm duas questões no livro que fazem essa ponte. A primeira delas é a perda da memória, já que esse livro fala sobre o genocídio de algumas populações indígenas. Só que não para no genocídio da carne, é também uma morte da memória. Nesses territórios do Sul,  os povos indígenas não foram simplesmente mortos, a memória deles também está sendo morta. Hoje em dia, esses territórios são reconhecidos como territórios pertencentes aos colonos”, pontua Bellé.

Atualmente, os povos indígenas resistem e lutam para retomar seus territórios originários. Em Santa Catarina, a terra indígena Ibirama-Laklãnõ é disputada por agricultores e pelos xokleng. Uma parte dela é exigida pelo governo estadual, que usa como base a tese do Marco Temporal, aprovada pelo Congresso no ano passado. A lei, cuja constitucionalidade está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal (STF), defende que os povos indígenas só podem reivindicar territórios que já estivessem ocupando na data de promulgação da Constituição, ou seja, 5 de outubro de 1988.

“A ideia é jogar luz sobre esses povos que são tão invisibilizados. Quando a gente pensa no Sul do Brasil, raramente você pensa em povos indígenas, mas eles estão ali ancestralmente lutando e continuam lutando. Sempre gosto de lembrar que a maior luta atual dos povos indígenas é contra o Marco Temporal”, lembra o poeta.

A orelha do livro foi assinada por Eliane Potiguara, poeta indígena, professora e ativista. A capa foi feita pela artista Moara Tupinambá. Retorno ao Ventre recebeu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na categoria de poesia.

*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles


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