Exposição Des-habitar Escutas une arte e ciência de dados para repensar a ocupação urbana

Espaço das Artes da USP expõe os resultados de pesquisas artísticas e científicas do laboratório InterSCity; exposição apresenta obras de artes sonoras baseadas na população que vive na Cracolândia

 04/06/2024 - Publicado há 1 mês

Texto: Maria Trombini*

Arte: Beatriz Haddad**

Christopher Alex e Heri Brandino em gravação realizada na porta do Bar da Nice, no Território da Cracolândia, para o trabalho audiovisual Escuta em Disputa – Foto: Lílian Campesato

A exposição Des-habitar Escutas: escuta em disputa na Cracolândia apresentará até o dia 19 de junho, das 10 às 20 horas,  no Espaço das Artes (EdA) da USP, os resultados de pesquisas artísticas e científicas desenvolvidas pelo projeto InterSCity, também da USP. A mostra teve início neste dia 4 de junho, e para o evento de abertura foram convidadas as artistas Laurah Cruz e Mc Docinho para a apresentação de um pocket show em parceira com músicos da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP) Tom Jobim.

A exposição traz os resultados de trabalhos de arte e ciência realizados pelo InterSCity. Ele é um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) e dedica-se a explorar as diferentes variáveis da internet do futuro para aplicação em cidades inteligentes, onde ciência e gestão urbana se unem para melhorar a qualidade de vida da população.

O projeto articula 40 pesquisadores de dez universidades brasileiras, além de um instituto de pesquisa e uma startup. Ele é coordenado por Fabio Kon, professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Dos 40 membros, apenas um trabalha com pesquisa artística: Fernando Iazzetta, professor no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e coordenador do Núcleo de Pesquisas em Sonologia (NuSOM) da USP.

A curadoria científica foi realizada pelos professores Fábio Kon e Mateus Humberto. Já a curadoria de pesquisa artística é fruto do trabalho das pesquisadoras Lílian Campesato e Valéria Bonafé, ambas do NuSOM.

Fabio Kon - Foto: IME/USP
Fabio Kon - Foto: IME/USP

Análise de dados na gestão pública

A exposição será dividida em dois ambientes. Na sala de entrada, será apresentado um resumo dos resultados científicos do projeto. As pesquisas mostram como a tecnologia pode ajudar a solucionar problemas urbanos, como os de saúde, mobilidade urbana e educação.

A maior parte dos trabalhos é de uma área específica da computação: a ciência de dados. Os pesquisadores desenvolveram ferramentas inovadoras para processar grandes quantidades de dados, o que permite construir mecanismos para melhor visualização das informações disponíveis e facilita a análise e a elaboração de novas estratégias de gestão pública.

“Existem muitos dados públicos que não são utilizados para praticamente nada, ficam abandonados nos sites dos ministérios. A gente mostrou que é possível construir dashboards interativos, ou seja, páginas da web interativas onde um profissional ou gestor pode investigar e analisar aqueles dados usando ferramentas avançadas de computação”, explica o professor Fabio Kon.

Ele menciona como exemplo o processamento de dados para formular imagens que mostram os deslocamentos que certos cidadãos precisam realizar a fim de acessar infraestruturas do Sistema Único de Saúde, o SUS, em São Paulo. “Elas mostram como analisar os fluxos de pacientes: de onde eles saem e para onde eles vão para serem atendidos. São coisas que estão escondidas nos dados, mas a nossa pesquisa mostra de uma forma visual e fácil”.

O pesquisador ressalta a importância da divulgação desses trabalhos: “eu gostaria que as pessoas tivessem contato [com as pesquisas] para ter noção disso e para que, no futuro, elas transmitam essa ideia de que as políticas públicas deveriam ser feitas baseadas em ciência, não baseadas em um achismo das pessoas ou no que é mais eleitoralmente interessante”.

“No Brasil, usa-se muito pouco a ciência de dados para pensar políticas públicas”

Cracolândia: sons de disputa

A segunda parte da exposição apresentará doze obras de arte. Elas foram elaboradas entre 2023 e 2024, tempo em que as artistas e pesquisadoras do NuSOM Lílian Campesato e Valéria Bonafé frequentaram o território da Cracolândia e desenvolveram trabalhos de pesquisa artística.

O NuSOM é composto por diversos pesquisadores, que se organizam em subgrupos de pesquisa conforme a similaridade e a afinidade entre os temas por eles trabalhados. Lilian e Valéria compõem, desde 2017, o projeto Microfonias: invenção e compartilhamento de escuta, que busca promover reflexões sobre questões éticas, poéticas e políticas implicadas na escuta por meio de metodologias não-convencionais de pesquisa.

“Fomos convidadas para fazer um projeto de pesquisa dentro do InterSCIty, cujo tema central são as grandes cidades. A gente visualizou, logo no começo, que a saída desse projeto seria uma exposição. Não se tratava apenas de fazer alguma performance, um documentário ou um vídeo. A gente achou que a exposição era o melhor lugar para que a gente pudesse compartilhar essas pesquisas e que acolhesse melhor todos esses formatos”, conta Lilian.
Valéria Bonafé e Lílian Campesato - Foto: Arquivo pessoal
Valéria Bonafé e Lílian Campesato - Foto: Arquivo pessoal

Elas visitaram semanalmente, por mais de um ano, o território da Cracolândia. O termo é usado para se referir a uma área entre os bairros da Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos, amplamente ocupado por pessoas em situação de rua desde a desativação do Terminal Rodoviário da Luz, em 1982. Há décadas, o tráfico de drogas, a violência e outras situações de vulnerabilidade social representam um grande problema para a gestão pública da capital paulista no local.

As pesquisadoras explicam que a escolha do lugar se deu pela percepção de que existe uma dificuldade em conectar a população com o território, de maneira a prestar uma escuta para o lugar, para as pessoas e para o que está sendo produzido ali. “Não tem como você escutar e entender aquilo sem ir até lá. Não uma, mas várias vezes. É preciso conviver naquele território e estar disposto a se abrir”.

Reprodução do mapa "Cracolândia's Shifting Borders" - Fonte: Site/Centro de Convivência É de Lei

Reprodução do mapa Cracolândia’s Shifting Borders – Fonte: Site/Centro de Convivência É de Lei

“Esse é um território muito polêmico. No senso comum, rapidamente se tem opiniões, críticas e julgamentos sobre as pessoas que estão lá. É um estigma muito forte e carregado, que ultrapassa raça e classe. Existe um ódio direcionado para as pessoas que ali estão”, opina Lílian.

“O que estamos tentando fazer é sensibilizar as pessoas. Mostrar que na Cracolândia tem muita pobreza e tristeza, mas também tem arte e alegria, tem desejo de fazer e de se conectar com a cidade, tem vontade de existir e de viver”

Valeria e Lilian contam que o projeto atuou promovendo encontros e conexões entre lugares e pessoas que muitas vezes não estão dialogando, a fim de entender as relações existentes na cidade de São Paulo que moldam as escutas coletivas e individuais. “A escuta é um campo de conflito. Ela não é uma atividade passiva, em que nossos ouvidos apenas recebem sons. Ela implica em ação e, portanto, é atravessada por forças políticas, sociais, éticas, culturais e econômicas. De que lugar eu escuto? Quem é ouvido? Quem é silenciado?”, questionam.

Em um primeiro momento, elas desenvolveram trabalhos com alunos e funcionários da EMESP Tom Jobim. Foram propostas vivências relacionadas a tocar, compor e escutar diferentes sons.

Depois, elas também fizeram colaborações com artistas e moradores da região ligados a outros equipamentos culturais, como o Teatro de Contêiner, Bar da Nice, Tem Sentimento, e Paulestinos.

Dessa interação com a comunidade, surgiram os resultados que serão apresentados na exposição. Serão imagens, trabalhos audiovisuais, músicas, instalações, ambientes sonoros, telas interativas e outros formatos.

As artistas ressaltam a importância do trabalho de curadoria, que selecionou e organizou todos esses trabalhos. Em parceria com o curador científico Mateus Humberto e com um conjunto de profissionais parceiros do NuSOM, elas procuraram apresentar os materiais artísticos estabelecendo conexões e diálogos com as pesquisas científicas.

“A nossa pesquisa tem resultados e saídas diferentes. Ela até poderia ser apresentada em um texto acadêmico, mas aí ela teria sido de outra maneira. Nesse caso, tivemos a chance de encontrar novos modos de apresentar aquilo em que nós e os outros pesquisadores temos trabalhado”, afirmam Lilian e Valéria.

Serviço

Data: entre 4/6 e 19/6, de segunda a sexta-feira, das 10 às 20 horas

Local: Espaço das Artes – Rua da Praça do Relógio, 160, Cidade Universitária, São Paulo – SP

Classificação: Livre

Mais informações: https://interscity.org/events/des-habitar-escutas-exposicao-de-arte-ciencia-e-tecnologia/

*Estagiária sob supervisão de Tabita Said e Antonio Carlos Quinto

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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