USP recebe doação das obras completas de Jeremias Gotthelf

Clássico da literatura suíça, autor escreveu sobre o mundo rural preocupado com questões sociais e religiosas

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 19/12/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 20/12/2022 as 17:19

Texto: Luiz Prado

Arte: Adrielly Kilryann

Diante desse oferecimento inesperado os pobres homens apuraram os ouvidos. Pudessem eles entrar em acordo quanto ao pagamento, estariam salvos, pois até o declive da igreja eles conseguiriam levar as faias sem que o trabalho na plantação fosse negligenciado e eles sucumbissem. Por isso o velho disse:

– Diga-nos então o que você quer em troca, para que possamos fechar o negócio.

O Verde fez então uma cara de finório; sua barbicha crepitou, seus olhos cintilaram na direção dos camponeses, como olhos de serpente, e dos cantos da boca saiu uma risada horrorosa quando ele a abriu, dizendo:

– Como eu disse, não estou cobiçando muita coisa, nada mais do que uma criança não batizada.

A palavra reluziu em meio aos homens como um relâmpago, de seus olhos caiu uma venda e eles se dispersaram como joio ao rodopio do vento.

Então o Verde soltou uma risada tão estridente que os peixes se esconderam no riacho, os pássaros buscaram o interior das matas, a pena balançou horripilantemente em sua boina e a barbicha se movimentou para cima e para baixo.

O excerto acima, um dos momentos fulcrais da novela A Aranha Negra (Die schwarze Spinne, 1842), é suficiente para sugerir ao leitor a elegância do talento narrativo de Jeremias Gotthelf (1797-1854). Escritor e pastor suíço de língua alemã, Gotthelf é dono de uma obra completamente enraizada nas áreas rurais do Emmental, na Suíça, e imbuída de religiosidade e preocupações sociais. Admirado por Thomas Mann, Hermann Hesse, Walter Benjamin e Elias Canetti, trata-se do grande clássico da literatura suíça, ao lado de Gottfried Keller (1819-1890). E, apesar de ainda pouco conhecido do grande público no Brasil, acaba de aportar na Universidade de São Paulo em grande estilo.

O motivo é a chegada dos primeiros volumes da Edição Histórico-Crítica das obras completas do autor (Historisch-kritischen Gesamtausgabe), coleção em alemão coordenada pela Fundação Jeremias Gotthelf e pela Universidade de Berna e iniciada em 2012. Com publicação projetada para 67 volumes e término previsto apenas em 2047, os livros foram doados para a Biblioteca Florestan Fernandes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

O oferecimento se deu por intermédio de Marcus Vinicius Mazzari, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH e tradutor de A Aranha Negra, título mais conhecido e celebrado de Gotthelf e o único disponível em português no Brasil, lançado em 2017 pela Editora 34. Com isso, a USP é talvez a única universidade fora da Suíça a receber tal doação, que deve se dar ao longo de 25 anos. Os primeiros exemplares já podem ser consultados pelos usuários da biblioteca.

Conforme conta o docente, tudo começou com a tradução de A Aranha Negra, que foi enviada para a Suíça e recebeu elogios na Universidade de Berna. Além disso, outros dois desdobramentos acompanharam o trabalho: um convite para Mazzari participar de uma enciclopédia sobre Gotthelf e a recomendação da doação da Historisch-kritischen Gesamtausgabe para a USP.

Edição brasileira de "A Aranha Negra", de Jeremias Gotthelf, novela inspirada em lendas medievais, na "Bíblia" e nos surtos de peste negra que atingiram a Suíça nos séculos 14 e 15 - Foto: Divulgação

“São livros muito caros”, conta o professor. “A coleção será importante para futuros leitores e pesquisadores, interessados tanto em literatura como em teologia e sermonística, já que os sermões de Gotthelf são verdadeiras obras de arte.” Além disso, Mazzari acredita que a coleção poderá futuramente inspirar parâmetros para edições críticas de grandes autores nacionais, como Machado de Assis, João Guimarães Rosa ou Carlos Drummond de Andrade, por exemplo.

O professor Marcus Mazzari, em seu escritório, com o DVD da versão cinematográfica de Uli, o Servo e o livro História de Vida do Escritor Jeremias Gotthelf, publicado em 2022 por Werner Eichenberger, que conta a trajetória de Gotthelf - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Os primeiros volumes da publicação foram entregues oficialmente durante as atividades da 6a Semana de Literatura Alemã no Brasil, numa mesa-redonda sobre a literatura de língua alemã da Suíça, ocorrida em 20 de junho. No evento, estiverem presentes o cônsul-geral adjunto da Suíça em São Paulo, Michael Schweizer, e os professores Marcus Mazzari e Helmut Galle, também da FFLCH.

O plano completo da Historisch-kritischen Gesamtausgabe compreende sete seções, organizadas em “Romances”, “Narrativas”, “Imagens e lendas da Suíça”, “Sermões”, “Textos jornalísticos”, “Correspondência” e “Histórias de calendário” (uma coleção de textos didáticos e informativos produzidos por Gotthelf para acompanhar publicações anuais, à moda do Almanaque Biotônico Fontoura, que circulou no Brasil de 1920 a 1988). São 13 romances, cerca de 50 narrativas, uma série de contribuições para jornais suíços tratando de questões sociais e toda sua produção religiosa.

Um autor enraizado no mundo rural

“Suas narrativas tematizam questões do mundo camponês”, explica Mazzari. “É um escritor que buscou, como Walter Benjamin salientou no ensaio O Narrador, dar conselhos e orientações, em primeiro lugar para os camponeses, mas não apenas. Toda a sua obra tem uma dimensão prática, um interesse em resolver questões sociais concretas.”

Jeremias Gotthelf é, na verdade, o pseudônimo de Albert Bitzius, nascido em 1797 na comuna de Murten, cantão de Friburgo, onde passou parte da infância. Em 1804, seu pai, Sigmund Bitzius-Kohler, é designado pastor na aldeia de Utzenstorf, na região do Emmental, fato que ocasiona a mudança geográfica da família. Outro deslocamento aconteceria na vida do jovem Albert em 1812, quando se matricula em uma escola de Berna, frequentando lá também, entre 1817 e 1820, o curso superior de Teologia, seguindo os passos do pai. Formado, daria início ao seu vicariato, o estágio preparatório para o exercício pastoral, atuando em Utzenstorf, Göttingen e Herzogenbuchsee.

A fixação definitiva de Albert Bitzius aconteceria aos 33 anos, quando chega à cidade de Lützelflüh, onde permaneceria por toda a vida. Lá, atua inicialmente como ajudante do pastor local e, dois anos depois, torna-se seu sucessor. Casa-se então com Henriette Zender, neta do antigo pastor, com quem terá duas filhas, que se tornariam esposas de pastores, e um filho, que também seguiria a vocação do pai e do avô. Bitzius ainda conciliaria o ofício religioso com o trabalho de inspetor escolar de Lützelflüh e a administração de um abrigo para crianças pobres.

Sua estreia literária seria relativamente tardia, aos 40 anos, quando publicou o romance O Espelho-Camponês ou História de Vida de Jeremias Gotthelf (Der Bauernspiegel, oder die Lebensgeschichte des Jeremias Gotthelf, 1837). Narrado em primeira pessoa, o livro já demonstra as preocupações sociais do autor ao denunciar o trabalho infantil na região do Emmental. Além disso, a obra também seria responsável pelo pseudônimo literário adotado por Bitzius em todas as suas obras subsequentes, uma referência ao profeta Jeremias e à fusão das palavras Deus (Gott) e do verbo ajudar (helfen).

A produção de Gotthelf se estenderia por 17 anos, até sua morte, em 1854, aos 57 anos. Todo o seu trabalho se mostraria avassaladoramente arraigado na vida rural do Emmental e recheado de conselhos de ordem prática e espiritual para os camponeses. A pujança de tais atributos em sua prosa a tornaria uma espécie de “enciclopédia da vida rural” e aproximaria o autor de Homero, que compôs uma “enciclopédia dos gregos”, conforme escreveu Otto Maria Carpeaux em sua História da Literatura Ocidental.

“Desde o nascimento, Gotthelf viveu no meio camponês e conviveu com suas tradições. Ele está profundamente enraizado na região do Emmental, da qual raramente se afastou. Um enraizamento que vem das condições concretas de sua vida”, analisa Mazzari.

Exemplos dessa relação íntima com o ambiente campesino são as obras Uli, o Servo (Uli der Knecht, 1846) e Uli, o Arrendatário (Uli der Pächter, 1849), espécie de romances de formação (Bildungsromane) para camponeses. Neles, Gotthelf delineia a vida do protagonista Uli desde a infância, marcada pela exploração do trabalho e o lar problemático, passando pela ameaça do alcoolismo e outras mazelas que o autor testemunhava em sua comunidade e denunciava em seus sermões. Gotthelf nos leva até um Uli adulto, que encarna a ascensão social no meio rural, casando-se e tornando-se proprietário de uma pequena extensão de terra.

“O autor vai contrabandeando, de maneira quase imperceptível para o leitor, ensinamentos dentro do enredo romanesco”, explica Mazzari. Personagem mais famosa de Gotthelf na Suíça, Uli teve seus livros adaptados para o cinema em 1954 e 1955. Trabalhos que, segundo o professor, mantêm até hoje sua popularidade no meio rural.

“Quando estive na Suíça, visitei uma aldeia na qual camponeses muito simples, que têm pequenas propriedades e produzem toda sorte de laticínios, liam a obra de Gotthelf, assistiam aos filmes e comentavam comigo”, conta Mazzari.

Trailer da versão restaurada de Uli der Knecht (Uli, o Servo), filme de 1954 dirigido por Franz Schnyder

Engajamento social

Os livros sobre Uli não são os únicos exemplos desse investimento pedagógico do autor. Ele também está presente em trabalhos como A Fábrica de Queijos em Vehfreude (Die Käserei in der Vehfreude, 1850), no qual nota-se o empenho de Gotthelf em polvilhar novamente a narrativa com conselhos para seus leitores, sobretudo os próprios camponeses.

Mazzari salienta, contudo, que a autonomia estética prevalece sobre o mero didatismo ao longo de toda a obra de Gotthelf. “O pastor nunca se sobrepõe ao artista”, pontua o docente. “Gotthelf é um dos autores da literatura mundial que mais profundamente conhecia a Bíblia e ela está presente em toda a sua produção literária. Mas o didatismo e o dogmatismo religioso são sempre sobrepujados pelas intenções artísticas do narrador.” Para Mazzari, a mensagem religiosa que aparece nos trabalhos do suíço é sempre secularizada e subordinada aos procedimentos estéticos.

Para além do acento religioso, o engajamento social é outro dos traços constitutivos da biografia de Gotthelf que transbordam para sua produção artística, como o seu empenho em questões pedagógicas e sua luta por melhores condições para o ensino fundamental no cantão de Berna, especialmente no que toca à remuneração dos mestres-escolas. Exercendo por dez anos o cargo de inspetor escolar (Schulkommissär) e responsável pela supervisão de 19 instituições de ensino, o autor reuniu experiências suficientes para redigir o romance Sofrimentos e Alegrias de Um Mestre-Escola (Leiden und Freuden eines Schulmeisters, 1838-1839). “Gotthelf se engajou muito na luta pela educação”, relata Mazzari. “Ele acreditava que a sociedade suíça só se desenvolveria ao aperfeiçoar a educação, e até o final da vida se bateu muito em prol disso.”

Se o empenho nas lutas pela educação já aproxima Gotthelf de questões que ainda hoje são urgentes, sua defesa do tratamento científico para doenças e epidemias, incluído aí o apoio dado à vacinação, quase levam o leitor a acreditar estar diante de um escritor contemporâneo. Esse é justamente o tema do romance sobre a camponesa Anne Bäbi Jowäger (Wie Anne Bäbi Jowäger haushaltet und wie es ihm mit dem Doktern geht, 1844).

A obra é originária de um pedido da Comissão Sanitária de Berna, que buscava combater superstições e desinformações a respeito de uma epidemia de varíola que tomava o cantão. Para compor o livro, Gotthelf se empenhou em pesquisas medicinais e epidemiológicas, resultando em uma narrativa que apresenta a camponesa Anne como uma vítima da ignorância. Inimiga feroz da vacina e disseminadora do que chamaríamos hoje de fake news, Anne acaba presenciando a agonia do próprio filho e do neto, atacados pela doença, enquanto é salva justamente pela ciência que tanto combateu.

Outra frente de luta do autor foi o combate ao alcoolismo no meio camponês, como aparece na narrativa De Como Cinco Meninas Perecem Miseravelmente no Álcool (1838). No conjunto, toda uma série de posicionamentos que poderiam definir Gotthelf como um progressista, mas que, paradoxalmente, integram a trajetória de um autor comumente tachado de conservador.

Retrato do autor por Johann Friedrich Dietler: inicialmente próximo de concepções liberais, no final da vida Gotthelf adotaria a perspectiva de um republicanismo cristão - Foto: Johann Friedrich Dietler/Wikimedia Commons

Conforme Otto Maria Carpeaux escreve em História da Literatura Ocidental, enquanto autores simbolistas e decadentes eram incapazes de apreciar as descrições grosseiras da vida rústica apresentadas por Gotthelf, naturalistas e modernistas rejeitaram o que viram como ortodoxia protestante e política reacionária nos textos do pastor. Para o crítico, as razões para explicar o conservadorismo de Gotthelf envolvem o temor que os progressos do “espírito moderno”, a democracia e a indústria teriam lhe inspirado. “Chegou a odiar e perseguir uns pobres alfaiates, sapateiros, carpinteiros, que conforme o costume do tempo viajaram pelas aldeias em procura de trabalho, falando aos paroquianos de Gotthelf sobre socialismo e outras obras do Diabo”, registra Carpeaux.

Já Mazzari destaca como um dos vértices dessa questão a compreensão de que Gotthelf passou por transformações ao longo de sua trajetória, responsáveis por torná-lo cada vez mais conservador. “Ele polemizou muito com os professores alemães materialistas, que vinham dessa mesma tradição filosófica e econômica de Marx e Engels.” Segundo o docente, era comum a ida desses professores, pertencentes a uma esquerda mais radical, para a Suíça – o número de professores alemães no país é expressivo ainda hoje.

Em tais querelas, Gotthelf acabava assumindo discursos que lembram muito o Brasil de hoje, como a argumentação moralista sobre a destruição da família, por exemplo. “Por outro lado, sua prática sempre foi muito progressista”, relativiza Mazzari. “Seus primeiros textos foram sobre alcoolismo e trabalho infantil, algo contra o qual ele lutou e denunciou muito. Ele era um conservador muito engajado nas questões sociais.”

Entre Homero e Guimarães Rosa

A obra mais conhecida de Gotthelf, A Aranha Negra (que foi tema do programa Biblioteca Sonora, da Rádio USP, com a participação de Mazzari), é pródiga nos elementos que caracterizam a escrita do autor. Estão lá os conselhos religiosos, a censura à superstição, o apreço da tradição, os ensinamentos de ordem prática e cotidiana, o uso constante de termos dos dialetos rurais suíços e uma prosa que maneja com elegância a arte de narrar.

História de um pacto com o demônio e as suas consequências para os habitantes de uma pequena comunidade rural, a novela reelabora uma série de acontecimentos históricos da região do Emmental para criar uma alegoria religiosa e moral, com muitas alusões ao Fausto de Goethe. A aranha negra do título surge como um símbolo da peste negra, que flagela os camponeses em virtude de seu afastamento dos preceitos cristãos.

Trailer de Die schwarze Spinne (A Aranha Negra), adaptação de 2022 da obra de Gotthelf, dirigida por Markus Fischer

Para Mazzari, o tema do pacto demoníaco é um dos elementos que permitem aproximar Gotthelf de um autor mais familiar para o público brasileiro: João Guimarães Rosa. Conforme conta o professor, existem muitas afinidades entre os dois escritores. “Rosa é um homem profundamente enraizado no sertão, como Gotthelf é no Emmental. E ambos são extremamente religiosos, sem que a orientação religiosa se sobreponha à dimensão artística de suas obras.”

Mas existe ainda outra comparação capaz de realçar as qualidades da produção de Gotthelf. Começando por Gottfried Keller e passando por Carpeaux, diversos leitores e críticos situados em diferentes pontos do tempo e do espaço apontaram relações entre a obra do autor suíço e os escritos de ninguém menos que Homero.

“Gotthelf é um escritor primitivo; e só uma comparação pode estar certa, uma comparação muito grande: com Homero”, escreveu Carpeaux. “A obra do suíço é uma enciclopédia da vida rural, assim como Homero fora a enciclopédia dos gregos.”

Outro exemplo dessa aproximação é dado por Mazzari. O professor cita a construção das frases em Gotthelf, que evocariam os hexâmetros do autor grego. “Ele escreve em prosa, mas uma prosa que lembra os ritmos, as pausas e as divisões de Homero.”

O professor também assinala que o escritor possui o que é chamado na teoria literária de ingenuidade épica de Homero. “No grego, os deuses intervêm bastante no mundo da Ilíada e da Odisseia. Em Gotthelf há muito disso também. O Deus cristão age no mundo dos camponeses. Quando Uli engana outra pessoa, por exemplo, é punido por Deus. Não explicitamente, como em Homero, mas implicitamente. Podemos dizer que o Deus de Gotthelf é um Deus bastante severo, um Jeová que não permite às pessoas se portarem de maneira inescrupulosa.”

Mazzari lembra ainda que a teoria literária fala do mundo de Homero como um lugar sempre banhado pelo sol, uma imagem possível de ser atribuída também ao universo de Gotthelf. “O sol de Homero era uma expressão muito forte. Seu mundo é bastante solar e iluminado. E o mundo de Gotthelf também é um mundo, sobretudo, iluminado pelo sol”, conclui o professor.


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