Por Janice Theodoro da Silva
Minha mãe me ensinou, quando eu era pequena, a importância da humildade. A explicação dela era simples. Eu não deveria ficar dando demonstração nem de sabedoria superior quando tirava 10 na prova nem mostrar uma indiferença (superior) por ter conseguido tirar zero (o que, não raro, acontecia comigo). Passei a vida amando as notas de 5 a 7 para evitar o pecado da arrogância. Confesso que a diferença nas duas pontas, para menos e para mais, resultou em um pouco mais de tempo para brincar na infância e namorar na juventude.
Mas foi na China que percebi o quanto a humildade, em países distantes das tradições judaico-cristãs, podia ser diferente.
Fui convidada para uma festa importante promovida pelo Banco Português Ultramarino, em Macau, na China. O banco ia comprar uma série de pinturas de Deng Lin (1941-), filha de Deng Xiaoping. Acompanhei um amigo, funcionário do banco, para dar modestas sugestões para a compra.
Deng Lin teve uma história muito difícil. Como ela mesma contou, seus pais tiveram que deixá-la com uma família de camponeses quando ainda tinha 2 anos. Teve escorbuto em razão da fome que passou durante a guerra civil. Foi aluna do mestre da pintura Wang Shensheng, que pintava flores e pássaros. Foi ele que a ensinou a pintar com pinceladas largas. A artista guardou por dez anos as pinturas do mestre no colchão. Na sua pintura, Deng Lin foi perseguida pelas “belas artes revolucionárias”. Somente em 1976, com o afastamento do “bando dos quatro”, voltou a pintar à sua moda.
A festa era um almoço. Uma amiga macaense, filha de chineses, ia me levar para a festa. Passou no meu apartamento para me pegar. Entrou na sala, olhou para mim e disse: “Você vai assim, desse jeito?”. “Você não gostou do vestido?”, perguntei. “Faltam adornos, um pouco de ouro.” Ouro?! Ela explicou: “É uma festa e você deve expressar o seu respeito pela convidada”. Demorei um pouco para compreender o que estava acontecendo. Por sorte sou historiadora e lembrei tanto dos jesuítas como dos franciscanos no Oriente. Voto de pobreza e roupa rasgada não davam certo na conversão. A situação era a mesma. Eu precisava me paramentar. Emprestei joias pela primeira vez na vida e reformulei o meu conceito, cristão, de humildade e modéstia.
Naquele dia de festa, aprendi que a humildade pode estar vestida com diferentes roupas. Aprendi que ser humilde às vezes exige exposição, brilho, protagonismo, deixar que todos nos vejam, quando o fim é justo. Depende da circunstância e do fim proposto. Pode exigir ouro ou pode exigir que um mensageiro se exponha, como o personagem principal, em razão de um perigo iminente. Diante de uma catástrofe, o protagonista pode ser o humilde corneteiro.
Janice Theodoro da Silva é professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP