Sergio Mendes, o construtor de músicas e pontes

Músico que morreu nos Estados Unidos no dia 6 passado, aos 83 anos, foi um dos grandes responsáveis pela divulgação da música brasileira no exterior

 13/09/2024 - Publicado há 3 meses     Atualizado: 16/09/2024 às 14:15
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Homem tocando teclado.
O cantor, compositor e instrumentista Sergio Mendes, que morreu no dia 6 passado, aos 83 anos – Fotomontagem Jornal da USP com imagens deDomínio público/Acervo Arquivo Nacional via Wikimedia Commons

Os anos 50 iam completando seus últimos dias, prestes a inaugurar uma década planetariamente pujante de inovações e contestações. Mas ainda faltava revolucionar a música. Aqueles jovens, tão ligados aos sambas-canções das ruas cariocas quanto aos jazzistas estadunidenses, burilavam novos jeitos de tocar e cantar. Muitas vezes em casas e apartamentos uns dos outros. Entre os jovens, um tecladista brilhante que tinha de sair antes da meia-noite, deixando a festa para trás, a fim de não perder a última barca que voltava do Rio de Janeiro a Niterói. Lá ia Sergio Mendes atravessando a Baía de Guanabara. Essa história, testemunhada ao vivo e lembrada pelo jornalista e crítico musical Roberto Muggiati em alguns de seus textos, traz os momentos iniciais de uma turma que formou e consolidou a bossa nova.

Ele também recorda o evento estrondoso, embora dessa vez não in loco, realizado em 1961, que levou para São Paulo e Rio de Janeiro músicos prestigiados como Coleman Hawkins, Herbie Mann, Dizzy Gillespie e Chris Connor, entre outros, e que teve Sergio Mendes fazendo jam sessions nos intervalos. Aquele tour sul-americano do American Jazz Festival – que, depois, ainda passou por Buenos Aires – possivelmente foi um dos principais impulsos para a apresentação dos músicos brasileiros no Carnegie Hall, em 1962.

Mas ainda não seria em 1962 que Sergio Mendes se mudaria de vez para os Estados Unidos. Isso aconteceu em 1964, quando foi preso e interrogado pela ditadura militar, que julgou haver alguma senha subversiva em telegrama enviado a um amigo informando sobre o nascimento do filho Rodrigo. Quando mudou de casa e de vida, sua carreira já tinha algum apelo internacional, haja vista ter gravado um disco com Cannonball Adderley, lançado em 1963. Nada comparado ao que viria a ser logo em breve. Mas já era um começo extremamente promissor.

Barca de Niterói ao mundo

No livro A Onda Que Se Ergueu no Mar, Ruy Castro escreve a lista de músicos brasileiros que passaram a trabalhar nos Estados Unidos depois de 1962. Eram instrumentistas, compositores, arranjadores, cantores. “O Brasil finalmente exportava produtos acabados – não apenas matéria-prima”, notou Castro. “Arrancada de seu solo com raiz e tudo, não era surpreendente que, anos depois, muitos americanos de boa-fé jurassem que a bossa nova fora inventada por Henry Mancini ou Burt Bacharach”, acrescenta Castro.

Homem falando ao microfone.
O professor Eduardo Vicente – Foto: CV Lattes

O professor Eduardo Vicente, docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e pesquisador de música popular e indústria fonográfica, analisa o papel de Sergio Mendes na internacionalização da música brasileira: “Sergio Mendes foi, sem dúvida, um dos que abriram esse espaço para a música brasileira no cenário internacional. Ele não se radicou nos Estados Unidos, em 1964, com esse objetivo, mas, antes de tudo, fugindo da repressão da ditadura militar. Assim, ele teve que, em alguma medida, recomeçar sua carreira por lá. Mas ele também era um músico de formação erudita, que tinha se aproximado do jazz quase uma década antes e que começava a se tornar um nome reconhecido da música brasileira a partir dessa base. Então, a relação entre a música brasileira e a norte-americana estava longe de ser estranha para ele”.

Sergio Mendes tinha em seu repertório de formação a audição de artistas como Horace Silver, Art Tatum e, especialmente, Dave Brubeck. Quando ele gravou, com o sexteto Bossa Rio, o disco Você Ainda Não Ouviu Nada!, passou da usual combinação minimalista de violão e voz da bossa nova aos metais e contrabaixo tão comuns nos grupos de jazz.

Homens tocando instrumentos musicais.
Capa do disco Você Ainda Não Ouviu Nada! – Foto: Divulgação

Essa aproximação com a música estadunidense tem seus críticos. O pesquisador musical José Ramos Tinhorão é um deles. Em seu livro Música Popular: Um Tema em Debate, ele afirma que o fenômeno da bossa nova seria uma reprodução, com anos de atraso, de processo similar ao que acontecera nos Estados Unidos, ou seja, a elitização das formações instrumentais. Tinhorão explica que, no caso do Rio de Janeiro, a concentração urbana pós-guerra provocou imensa explosão imobiliária, “transformando aquela área da Zona Sul carioca no bairro das novas camadas média e alta”, fazendo com que “a diversão a ser oferecida a tal tipo de gente, na falta de modelo prévio local, só podia ser a do equivalente da mesma classe nos países desenvolvidos da Europa e dos Estados Unidos”. No caso, Tinhorão se refere às boites, locais geralmente pequenos nos térreos dos edifícios dessa cidade que se densificava. E ainda completa, afirmando que os músicos, por sua condição de classe ou desejo de ascensão social, “tinham em comum o ideal de modernidade e bom gosto da ‘melhor música americana’ – que continuava a ser o jazz”, aderindo assim a tal linguagem musical.

Sendo a bossa nova amplamente debatida, seus músicos personificam aspectos da relação entre a arte e a conjuntura social. É por esse caminho que analisam Rafael dos Santos e José Roberto Zan quando tratam do disco Você Ainda Não Ouviu Nada!, lançado em 1964. Para eles, a suavidade da bossa nova e a estridência do que viria a ser conhecido como samba jazz refletem o impasse que a euforia desenvolvimentista dos anos 50 encontraria pela frente com a imposição da ditadura militar. A música fazendo soar as contradições do momento.

Sergio Mendes articulou a música brasileira à música internacional, especialmente a estadunidense. Com isso, teve um papel na circulação artística entre distintas culturas. “Nos Estados Unidos, ele buscou criar uma versão da música brasileira mais acessível a um grande público, e formar uma banda que mesclava músicos brasileiros e cantoras norte-americanas foi uma estratégia genial. Para entender o sucesso e o valor de Sergio Mendes, é fundamental notar sua busca em ser um intérprete, um mediador entre tradições, que tentava traduzir para um público mais amplo”, reflete Eduardo Vicente. Ele se refere às diversas formações criadas por Sergio Mendes, sendo a mais conhecida o grupo Brazil ’66.

Singularidade de Sergio Mendes

Existem várias passagens anedóticas sobre Sergio Mendes, muitas vezes contadas por ele mesmo. Uma delas se refere ao seu primeiro trabalho com o grupo Brazil ’66, num resort. O dono do local, notando que o grupo não empolgava o público, que queria mesmo era dançar, acabou demitindo os artistas. Logo em seguida, o grupo foi contratado pela prestigiada gravadora A&M. Aliás, essas passagens ilustram uma ideia que Mendes ressaltava sobre sua vida e carreira: a serendipidade. Ou seja, a noção de que coisas valorosas acontecem fortuitamente, sem que alguém as tenha buscado. Para ele, isso foi uma das marcas de sua trajetória. Basta lembrar também o disco gravado com Cannonball Adderley. O músico brasileiro tinha se apresentado no Carnegie Hall e aproveitou, antes de voltar ao Brasil, para passar na antológica casa de música Birdland, em Nova York, estabelecimento considerado a meca do jazz. Foi lá que Cannonball o encontrou e o convenceu a ficar mais tempo a fim de gravarem um disco juntos, para completa estupefação de Sergio Mendes.

Mas não é apenas esse lado anedótico e mesmo mitológico da trajetória de Sergio Mendes que faz dele um artista tão importante e com contribuições singulares. Para Eduardo Vicente, seria uma análise simplória considerar que sua música seja categorizada somente como suave, fácil e voltada a um público médio. Ele aponta alguns motivos para ir além dessa noção. “Em primeiro lugar, porque omite o papel fundamental que Sergio Mendes e sua obra assumiram ao abrir caminho para a música brasileira e para muitos de seus artistas nos Estados Unidos e no mundo. Eu entendo o Brasil como um País incrivelmente isolado em termos musicais. Historicamente, nossa música é pouquíssimo conhecida no exterior (sendo a principal exceção a bossa nova), e a música internacional tem pouco espaço aqui. Sergio Mendes inverteu genialmente essa equação, sendo muito mais conhecido no exterior do que no Brasil e se tornando, como algumas matérias publicadas a partir da sua morte chegaram a apontar, um autêntico embaixador da música brasileira”, explica Vicente.

O professor também faz questão de ressaltar a “absoluta competência e originalidade do caminho escolhido por Sergio Mendes, que, basicamente, criou um estilo, um modo de se aproximar desse público”. Para ele, essa fusão musical teria muito menos chances de sucesso sem o imenso talento de Mendes e o das cantoras e instrumentistas que arregimentou.

E, finalmente, Vicente valoriza o empenho de um artista com a formação e o talento de Mendes em se aproximar de um público mais amplo. “Isso precisa ser celebrado como algo extraordinário e até estranho à tradição musical brasileira – especialmente dos anos 1960, período de formação de Sergio -, na qual uma música com maiores pretensões artísticas tendia a não se voltar ao que seria o dito gosto popular”, conclui.

Homem de barba e bigode.
O jovem Sergio Mendes – Foto: Domínio público/Acervo Arquivo Nacional via Wikimedia Commons

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