Desde 2016, o projeto USP Música Criança funciona no Centro Cultural Carlos Alberto Nicolau, dentro da Casa do Menor Santa Lúcia, em São Joaquim da Barra, município com pouco mais de 50 mil habitantes localizado a 72 quilômetros de Ribeirão Preto, na região norte do Estado de São Paulo. A iniciativa tem como objetivo estimular a iniciação e a formação musical em crianças com idades entre 5 e 12 anos, e atualmente atende aproximadamente 200 alunos. Há ainda um outro polo em Ribeirão Preto, ligado à saúde, que oferece aulas de música a quase 100 crianças. Todas gratuitas. O projeto é uma iniciativa do professor Rubens Russomano Ricciardi, do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, e há dois anos é mantido pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), do governo federal, via Ministério do Turismo – Secretaria Especial da Cultura, com patrocínio de várias empresas da região.
O projeto oferece aulas individuais de vários instrumentos, como piano, viola, violino, violoncelo, contrabaixo, clarinete, flauta, trompete, trompa, trombone e tuba, além de aulas coletivas de canto coral e atividades educativas, como cursos e palestras, e ainda de ensino da língua inglesa. No primeiro semestre deste ano – assim como ocorreu em 2020 –, as aulas serão mantidas em ambiente virtual até que haja estabilização da pandemia de covid-19 e uma normalização geral da volta às aulas presenciais. “As aulas vêm acontecendo individualmente e com atividades coletivas, em plataformas como o Zoom, por exemplo, e quando é ao vivo, com recursos de vídeo para melhor adaptação dos alunos. Essa flexibilização também colabora para garantir a adesão dos alunos à plataforma digital”, afirma Ricciardi, que é regente e diretor artístico da orquestra USP Filarmônica – também ligada à FFCLRP.
O USP Música Criança é um projeto antigo de Ricciardi, que tinha como finalidade a criação de escolas públicas de música para crianças. Como ele conta, houve algumas inciativas nessa área, como o projeto do maestro Heitor Villa-Lobos durante o Estado Novo que propunha um ensino de educação musical e canto coral na escola pública, mas que foi decaindo até o fim da obrigatoriedade do ensino de música. Para o professor, não são apenas aulas de música, mas o fato de se ter uma iniciação musical de qualidade, com professores e profissionais consolidados na sua área de atuação, que levam a criança a uma alta performance, além de resolver problemas de saúde, segurança e cidadania. Além disso, diz, elas vão crescer internacionalizadas porque a música trabalha com partituras em vários idiomas, como latim, francês, italiano e alemão. “Por isso, as crianças adquirem uma formação diferenciada.”
“O projeto não é cultural, mas de educação. A arte precisa de uma liberdade que a cultura não admite. A cultura é a regra e a arte é a exceção.”
Como frisa Ricciardi, o projeto USP Música Criança não é cultural, mas de educação. “A arte precisa de uma liberdade que a cultura não admite. A cultura é a regra e a arte é a exceção.” O professor cita iniciativas semelhantes que são sucesso em outros lugares, como os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba) e o Música nas Escolas, em Barra Mansa (RJ), em que é possível constatar que houve uma diminuição da criminalidade da comunidade em mais de 90%. “É uma revolução. É uma educação libertadora”, comemora o professor. Ricciardi ainda informa que esse tipo de projeto também é sucesso em países como Rússia, Alemanha e Suíça, onde há uma educação musical séria, com professores capacitados, formando não só músicos, mas profissionais em outras áreas, que terão um refinamento intelectual diferenciado. “Então dá certo não só para a música, mas para todas as áreas do conhecimento.”
Para o professor, o que resolveria o problema da educação é a música, no campo das artes, e também o esporte, que desenvolve coordenação, disciplina, trabalho coletivo e hierarquias. “Música e esporte são ótimos para as crianças e devem começar na mais tenra idade”, defende, completando que a música tem um papel social essencial na qualidade de vida das crianças e também da comunidade. Desde os anos 90, o professor tenta desenvolver o projeto em Ribeirão Preto, sem sucesso. Segundo ele, as prefeituras acreditam que a música está ligada à área da cultura e não entendem que arte é educação. “A arte é formadora e a música é arte em movimento. Ela faz a criança ter uma autoestima elevada, e resolve problemas sociais múltiplos”, destaca.
Mesmo não conseguindo emplacar o projeto como queria em Ribeirão Preto, o professor implementou um projeto piloto, com o apoio do então diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, Gilberto Carlotti Junior – atual pró-reitor de Pós-Graduação da USP –, que funciona até hoje, atendendo aproximadamente 100 crianças. “A ideia inicialmente foi utilizar os postos de saúde, administrados pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Conseguimos algumas bolsas e começamos a atuar em Ribeirão Preto, e funciona bem”, informa. São três postos localizados nos bairros Jamil Cury, Vila Lobato e Vila Tibério, onde são ministradas aulas de violão, violoncelo e coro infantil. Segundo o professor, há uma vantagem em ser um posto de saúde, do ponto de vista da medicina. “As crianças vêm com os pais e isso promove uma maior aproximação das famílias do bairro com o posto de saúde, o que acaba melhorando o atendimento como um todo na área da saúde. Uma ação não é excludente da outra, são confluentes”, comenta.
“O Programa Aprender na Comunidade é um vínculo importante do projeto porque os nossos alunos de graduação, literalmente, aprendem na comunidade.”
O projeto de Ricciardi foi implantado em sua totalidade em São Joaquim da Barra. Segundo ele, o empresário Carlos Alberto Nicolau se sensibilizou com a proposta e se tornou mecenas do projeto, contribuindo com cerca de R$ 4 milhões para viabilizar toda a infraestrutura necessária, como espaço físico, aquisição de instrumentos e contratação de profissionais, enquanto o Departamento de Música da FFCLRP se responsabilizou pela filosofia e metodologia de trabalho. A maior parte dos professores é de alunos formados na USP, mas como destaca Ricciardi, há também professores bolsistas do programa Aprender na Comunidade, uma iniciativa da Pró-Reitoria de Graduação da USP. “O Programa Aprender na Comunidade é um vínculo importante do projeto porque os nossos alunos de graduação, literalmente, aprendem na comunidade”.
“O projeto em São Joaquim da Barra funciona em sua plenitude, e toda vez que temos concertos são momentos de rara emoção porque as crianças são muito envolvidas”, conta Ricciardi. Mas o professor informa que vem tentando conquistar autonomia no projeto, já que desde o início funciona com recursos da iniciativa privada. “Queremos autonomia, e que o projeto possa ter um orçamento previsto no início de cada ano para não haver descontinuidade”, diz. Segundo ele, o coordenador do projeto, Lucas Eduardo da Silva Galon, conseguiu captar recursos financeiros através do Pronac e uma terceira parceria está em vias de ser fechada. Há possibilidade de um convênio para a criação de um polo do USP Música Criança em Sertãozinho, cidade próxima a Ribeirão Preto.
“No Brasil não há esse tipo de repertório voltado para crianças, e o que acaba acontecendo é que nós mesmos escrevemos os arranjos.”
O professor também informa que há outras duas iniciativas importantes na área. Uma delas é a parceria entre a Fundação Nacional de Artes (Funarte), órgão do governo federal, e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em um projeto que visa a aumentar o repertório sinfônico para crianças. “No Brasil não há esse tipo de repertório voltado para crianças, e o que acaba acontecendo é que nós mesmos escrevemos os arranjos”, comenta, e completa: “As obras são difíceis para crianças, e precisam ter um caráter didático”. Para esse projeto da Funarte, foram convidados compositores de todo o Brasil para escrever músicas para projetos sociais e o próprio Ricciardi é um dos convidados do projeto.
Outra parceria importante diz respeito ao próprio USP Música Criança, que fez um convênio com o projeto Alma – Academia Livre de Música e Arte de Ribeirão Preto. Segundo Ricciardi, o projeto atende à faixa etária dos adolescentes. Como ele diz, as crianças ficam mais velhas e acabam ingressando no projeto Alma, depois prestam vestibular e entram na USP, fechando um ciclo. “É o que esperamos e é o que tem acontecido. A cada ano, há uma parte considerável de alunos dos nossos projetos sociais que passa no vestibular. Isso significa que esse é o caminho.”
Assista no link abaixo a uma das apresentações do coral do projeto USP Música Criança.
Mais informações sobre o projeto USP Música Criança estão disponíveis no site da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP e nos canais do projeto no Facebook, Instagram e Youtube.
Alunos podem participar do USP Música Criança desde os 5 até os 18 anosO projeto USP Música Criança foi implantado efetivamente em 2016, em São Joaquim da Barra. Segundo o coordenador geral do projeto, Lucas Eduardo da Silva Galon, ele surgiu com a ideia de criar uma base de formação musical que direcionasse as crianças para o universo das artes, culminando no seu ingresso na Universidade. “O projeto é voltado para a música clássica ou, como chamamos, música de concerto. Mas isso não quer dizer que não tenha aulas de música popular”, diz. O projeto começou com cerca de 80 alunos, em um espaço físico de apenas uma sala e somente quatro professores. Atualmente, o Centro Cultural Carlos Alberto Nicolau possui uma infraestrutura que conta com um teatro para cerca de 3 mil pessoas e 12 salas de aula, além de um corpo docente formado por 14 professores, todos alunos e ex-alunos da USP. Do total de vagas, 20% são reservadas para a comunidade, que segundo o coordenador são preenchidas através de uma triagem socioeconômica. São quatro disciplinas obrigatórias: Instrumento (escolhido pelo aluno), Teoria Musical, Canto Coral e Inglês. Além disso, os alunos aprendem a ler partituras em várias línguas. “Como têm aula de coro, eles aprendem a cantar em francês, italiano, alemão e até latim”, informa Galon. Os alunos entram com 5 anos e podem ficar até os 18 anos, quando ingressam na Universidade, como diz Galon, explicando que o projeto não aceita o ingresso de alunos com mais de 12 anos, mas os que já estão no projeto podem continuar. Há um processo de avaliação contínuo e acontecem apresentações regulares, no mínimo quatro anuais, além dos concertos internos. “Vamos completar cinco anos, e os primeiros alunos que estão completando 18 anos estão começando a tocar em orquestras profissionais”, conta, acrescentando que a evasão é de menos de 10%. “É um projeto bem concorrido, inclusive com lista de espera.” O objetivo, segundo ele, é conseguir mais recursos e fazer o projeto crescer, culminando na constituição de uma orquestra profissional em São Joaquim da Barra, distante dos grandes centros como Ribeirão Preto e São Paulo. Aulas remotas na pandemia Durante a pandemia, em 2020, as aulas virtuais foram mantidas, e neste primeiro semestre de 2021 acontecerá o mesmo. Cada um em sua casa, e com seu instrumento. Segundo Galon, a política do projeto prevê a compra do instrumento, que fica com o aluno enquanto ele estiver vinculado às aulas. “É como um empréstimo em que é acordado com os pais que, caso o aluno desista, o instrumento seja devolvido e repassado para outro aluno”, relata. Houve também apresentações virtuais, algumas disponíveis no Youtube (assista ao vídeo no link acima). O coordenador diz que também nesse canal há aulas virtuais de apreciação musical e dos próprios instrumentos, abertas a todo o público. “Se houver uma queda da pandemia, no segundo semestre deste ano voltaremos ao ensino híbrido, mas somente com as aulas individuais”, informa Galon. “Em 2020, chegamos a pensar em desistir das aulas por conta da pandemia, mas o projeto foi aprovado e conseguimos dar continuidade no formato on-line”, informa, e completa: “Muitos pais agradeceram pelo fato de o projeto ter continuidade mesmo durante o isolamento, porque basicamente esse foi o único aprendizado que tiveram em 2020, já que as aulas na escola pública não estavam acontecendo”. Como eles disseram para Galon, foi a única saída para seus filhos. “Nesta pandemia, a música tem salvado as pessoas, não só ela, mas as artes de modo geral. Se não fosse isso, estaríamos num deserto.” |