A edição 92 da revista Estudos Avançados, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP que acaba de ser lançada, ecoa a pergunta incessante que já faz aniversário na cabeça de milhões de brasileiros: como salvar a política?
Em duas seções – “Política e Dinheiro” e “Política” -, a nova edição da revista traz nove artigos de especialistas que buscam traçar a construção de uma “legítima política democrática” e “projetar um regime econômico que limite os abusos do capitalismo financeiro-rentista sem ceder ao estatismo dirigista”, conforme anuncia o editoral.
Os artigos que inauguram a edição analisam a relação entre política e dinheiro. O Professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e ex-reitor da USP Jacques Marcovitch trata da atual fragilidade dos partidos e do papel da sociedade na questão. Marcovitch propõe formas de atuação para a imprensa e a sociedade civil organizada e esboça considerações sobre o papel dos partidos.
“O governante escolhido em novembro vindouro presidirá as comemorações do bicentenário da Independência em seu quarto ano de mandato. Nenhuma oportunidade será mais propícia para celebrar o fim, sem volta, da influência do dinheiro privado nas decisões de Estado. Se até lá dotarmos a máquina pública de controles que possam inibir desvios dos recursos do erário, proclamaremos, em 2022, algo tão memorável quanto a emancipação conquistada no século 19.”
Na sequência, o Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP Fábio Konder Comparato batiza seu artigo com a dúvida. “Resta ainda, porventura, alguma esperança?” trata do que Comparato chama “vícios congênitos” da colonização portuguesa no Brasil. O autor encontra nesse processo o predomínio do interesse privado sobre o bem público, a transformação da terra então recém-descoberta em espaço para degredo de criminosos, a endemia da corrupção funcional, o patronato nas relações com os governantes, a dominação oligárquica e a ausência de espírito republicano no País.
“Antigamente, falava-se em pessoas bem ou mal-educadas, conforme elas seguissem ou não os padrões de comportamento vigentes na sociedade; e, como sabido, uma pessoa mal-educada em sua infância e adolescência dificilmente seria capaz de corrigir, na idade adulta, essa deficiência comportamental. Algo de semelhante ocorre com as sociedades. Os vícios de sua formação originária raramente são sanados com o passar do tempo.”
Arte na União Soviética
Rastreando as conexões entre cultura e política na experiência revolucionária soviética, o professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Celso Frederico delineia um retrato dos movimentos artísticos gestados na Rússia durante as primeiras décadas do século 20. Frederico observa como várias correntes, tais quais o produtivismo de Rodchenko, o futurismo de Maiakóvski e o proletkult de Bogdanov e Lunacharski, se debateram pela criação de uma arte revolucionária e, com o triunfo do stalinismo, foram soterradas e cederam lugar ao realismo socialista, a estética oficial do regime.
“Um fato tão extraordinário como a primeira revolução socialista vitoriosa não deixou os artistas indiferentes. Boa parte dos criadores culturais aderiu com entusiasmo a ela, mas a revolução por eles celebrada pouco tinha a ver com a realidade. Para muitos artistas, a revolução significava o começo de uma vida radicalmente nova, a instauração imediata da felicidade sobre a terra. Entretanto, as duras condições nos primeiros tempos na nova Rússia frustraram essas expectativas irreais.”
Frederico confere atenção especial aos escritos de Lênin e Trótski sobre as artes, investigando como suas diretrizes foram adotadas ou adulteradas no processo soviético. Embora nunca tenham redigido nada comparável a uma teoria estética, afirma o pesquisador, ambos fizeram incursões breves no campo das artes. São essas redações esporádicas de Lênin – obviamente, a literatura de Trótski sofreria o mesmo expurgo que seu autor – a base para a construção do realismo socialista, segundo o professor.
“Depois da morte de Lênin, o stalinismo se encarregou de inventar a ciência estética leninista. Para essa extravagante façanha, manipulou dois textos de Lênin que não tratavam do fenômeno artístico: o artigo ‘A organização do Partido e as publicações do Partido’, e o livro Materialismo e Empirocriticismo.”
Luiz Gama: negro, advogado e líder abolicionista
Outra seção da revista, composta de dois artigos, trata do abolicionista, advogado, poeta e ex-escravo Luiz Gama (1830-1882). No primeiro, o doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Diego Molina estuda a recepção dos textos biográficos sobre Gama.
Com uma carta, redigida ao amigo Lúcio de Mendonça, como principal referência de sua história de vida, Luiz Gama teve sua origem e trajetória apropriadas, interpretadas e ficcionalizadas desde o final do século 19. Filho de uma escrava liberta com português, Gama foi vendido pelo pai e, ainda cativo, aprendeu a ler e escrever. Fugido, conseguiu comprovar a ilegalidade de sua venda e continuou os estudos até se tornar funcionário público e advogado. Como jurista, liderou a causa abolicionista em São Paulo, libertando diversos escravos através de ações na Justiça.
Molina, que atualmente é pesquisador em Literatura Brasileira na FFLCH, se debruça sobre a biografia feita por Lúcio de Mendonça a partir da carta do amigo. Analisando o emprego de palavras e expressões usadas pelo biógrafo, Molina discute as dúvidas levantadas sobre a veracidade da narrativa do próprio Gama.
“O que está por trás do excesso do uso do condicional, em detrimento dos pretéritos típicos do discurso histórico, é o assombroso, que permanece implícito, de que um escravo possa ter aprendido a ler e escrever, publicado um livro de poesias satíricas de uma força poética sem precedentes no Brasil independente, que tenha reescrito e rearranjado o lugar da negritude tanto na história como nas letras brasileiras e que, além disso, tenha se tornado um exímio advogado, defensor de escravos, abolicionistas de primeira hora, maçom, republicano etc. A dúvida sobre a versão de Gama acarreta, assim, o preconceito tácito, pode até ser inconsciente, de quem ao ouvir a história pensa na mentira ou na impossibilidade.”
Já a mestre em Culturas Brasileiras pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP Lúcia Stumpf e o professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Júlio César Vellozo resgatam a construção do primeiro monumento público erguido em São Paulo para homenagear um líder negro. Os autores reconstituem as dificuldades e atrasos que o jornal Progresso, integrante da impressa negra paulista, enfrentou ao encabeçar o movimento para erguer o busto de Luiz Gama no Largo do Arouche, na região central da cidade.
“O busto de Luiz Gama não se esvaziou na paisagem com o passar dos anos, servindo ainda hoje de marco referencial para o movimento negro, que parte de lá para as suas caminhadas no aniversário do homenageado. Isso ocorre porque há um compartilhamento entre o que a escultura representa e o que lhe dá sentido. O monumento atua como espaço de memória coletiva – da luta dos negros por igualdade de direitos – e como lugar de história – sobre a imprensa negra paulista e o movimento negro da década de 1930.”
A nova edição de Estudos Avançados apresenta ainda outras três seções: “Leitura de Ficção” – que inclui artigo do crítico literário Alfredo Bosi sobre o poeta Augusto Meyer -, “Textos” e “Resenhas”.
Estudos Avançados número 92, 370 páginas, R$ 30,00. A publicação também está disponível gratuitamente on-line em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0103-401420180001&lng=pt&nrm=iso. Mais informações no site www.iea.usp.br/revista e pelo telefone (11) 3091-1675.