Piazzolla, cem anos de ousadia

Ou de audácia, como o músico argentino caracterizava seu trabalho, que reinventou o tango

 10/03/2021 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 19/03/2021 às 16:44
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Astor Piazzolla faria cem anos nesta quinta-feira, dia 11 – Arte de Lívia Magalhães sobre foto de Wikimedia Commons

 

Entre 1953 e 1954, o músico argentino Astor Piazzolla, recém-entrado na casa dos 30 anos de idade, estava em Paris. Depois de idas e vindas entre seu país natal e os Estados Unidos, ele havia recebido uma bolsa do governo francês para fazer aquilo que ele entendia ser o seu destino: estudar música erudita. E a professora não podia ser melhor – Nadia Boulanger, dona de um vasto currículo como educadora musical. Ao longo de sua carreira, Madame Nadia – que era amiga e incentivadora de Stravisnky – foi professora de nomes como Quincy Jones, Burt Bacharach e dos brasileiros Egberto Gismonti e Almeida Prado. E lá estava ela, com aquele jovem argentino que vez por outra a exasperava. Piazzolla queria porque queria ser compositor clássico, mas a professora parecia não concordar muito com a ideia. Um dia, cansada das tentativas eruditas do aluno, ela lhe perguntou se ele havia composto algo de sua terra. “Um tango”, respondeu Piazzolla, tocando em seguida Triunfal para a mestra. Nadia Boulanger, então, segurou as duas mãos do aluno apreensivo, olhou bem em seus olhos e disse: “É isso o que você tem que fazer”. E foi exatamente isso o que Astor Piazzolla fez pelas quase quatro décadas seguintes.

Ou mais ou menos isso. Porque o que Piazzolla – que completaria um século de vida nesta quinta-feira, dia 11 – fez foi muito além do que seguir o ritmo intenso e sensual do 2 por 4 do tango tradicional. Na verdade, ele reinventou aquela música de provável origem africana, que se desenvolveu no começo do século 20 em lugares de fama duvidosa em bairros proletários e no porto de Buenos Aires e que depois ganhou respeitabilidade e os palcos de teatros portenhos – até se tornar um marco cultural e social da Argentina. Mas que ninguém pense que essa reinvenção foi aceita de forma tranquila. De maneira alguma. 

Por toda a sua carreira, Astor Piazzolla foi tratado como gênio, um poliglota musical por aqueles que viam suas criações que incluíam erudição, tons jazzísticos e atonalidade como uma forma de revitalizar o tango, mas também como o herege que ousou mexer com o que não devia, que profanou o estilo que fez a fama de Carlos Gardel e Aníbal Troilo. Os tangueiros-raiz implicavam com tudo em Piazzolla: desde sua barba – depois, o cavanhaque – até a forma como ele tocava o bandoneón: em pé, com o instrumento apoiado em cima de um joelho. Para os tradicionalistas, o bandoneón deveria ser tocado sentado. Sempre.

O bandonéon de Astor Piazzolla, exposto no Centro Cultural Néstor Kirchner, em Buenos Aires, na Argentina – Foto: Wikimedia Commons

“Em meu país, se trocam os presidentes e não dizem nada. Trocam os bispos, os cardeais, os jogadores de futebol, qualquer coisa. Mas não se pode mexer com o tango. O tango deve ser deixado assim como é: chato, igual, repetitivo”, disse ele certa vez. E esta talvez tenha sido a maior ousadia de Piazzolla: mexer no “imexível”. “Minha audácia está na harmonia, nos ritmos, nos contratempos, no contraponto de dois ou três instrumentos, o que é lindo, e buscar que não seja sempre tonal, buscar a atonalidade”, afirmou, em outra oportunidade.

Audácia, ousadia, heresia. Que se dê o nome que quiser. O que Astor Piazzolla fez acabou marcando-o definitivamente como um dos grandes compositores do século 20. O que ele fazia era tango? Em uma conversa em meados dos anos 1980, em Curitiba (PR), com o então estudante de Jornalismo Ariel Palacios, ele disse: “A música de Buenos Aires é o tango, e se hoje a música de Buenos Aires é a minha… logo, minha música é tango”. Mas ele também a caracterizou como “música contemporânea de Buenos Aires” – talvez uma forma de arrefecer os humores dos tradicionalistas e se aproximar de algo mais transcendente. Ou, como disse sua biógrafa Maria Suzana Azzi, “Piazzolla é o produto de uma tradição e a ruptura dessa mesma tradição. Ele rompeu os paradigmas do tango”.

“A força da música de Astor Piazzolla, que foi um artista completo, está em ela falar à essência das pessoas. Sua música não fica só na estilística, na coisa bem feita, formal. Ela é visceral. E ela é feita de contrastes: ao mesmo tempo que tem uma violência, uma força, ela também tem uma ternura, uma doçura, o que cria uma relação maravilhosa. Esse é um dos segredos da música de Piazzolla: a fusão entre a delicadeza e a energia”, afirma o flautista e professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Toninho Carrasqueira. “E sua obra impactou muito na música do século 20, não só na Argentina, mas no mundo todo. Além do mais – e isso é pouco mencionado –, ao renovar o tango nos anos 1960, ele de várias maneiras também acabou fortalecendo-o diante da nova onda musical que estava na moda naquela época, o rock. O tango estava em baixa por causa do rock e Piazzolla acabou por revigorá-lo, mesmo tendo que enfrentar a tradição”, explica o músico, que gravou, entre outras obras de Piazzolla, História do Tango, peça para violão e flauta.

E o centenário e a música de Piazzolla – independente de rótulos – estão tendo as homenagens merecidas. O vetusto Teatro Colón de Buenos Aires – o mais imponente e importante da Argentina –, por exemplo, organizou uma série de apresentações on-line que começaram no dia 5 de março e vão até o dia 20. Com curadoria de Daniel “Pipi” Piazzolla – neto do músico – e do pianista e arranjador Nicolás Guerschberg, os concertos reúnem homenagens como Piazzolla Sinfônico e Projeto Elétrico Piazzolla. No final das contas, o “herege”, o “gênio incompreendido” – que morreu aos 71 anos, em 1992, depois de dois anos padecendo devido a uma trombose cerebral – venceu. Estudiosos estimam que Piazzolla tenha composto cerca de 3 mil músicas, das quais gravou pouco mais de 500. E pensar que tudo isso começou com um bandoneón que ele ganhou do pai.

Gardel e Nonino

O curioso é que a relação de Piazzolla com o tango e com o instrumento que o consagrou começou a léguas da capital portenha, em Nova York. Foi para lá que ele se mudou com os pais quando tinha 4 anos, e onde viveria até os 16. A família morava no então pouco recomendável Greenwich Village e, quando tinha 9 anos de idade, o pequeno Astor ganhou do pai um bandoneón – e não o abandonou mais, revezando-o eventualmente com o piano, que passou a estudar também em sua temporada americana. Seu sonho? Ser como Bach, cujas composições ele tocava no bandoneón. Mas é difícil ser argentino e ter um instrumento desses nas mãos e não descambar para o tango. Mesmo se estiver morando em Nova York.

Até porque, se Piazzolla estava longe da terra do tango, o tango não estava longe dele. E apareceu na forma do maior tangueiro de todos, aquele que os portenhos até hoje dizem que “canta cada vez melhor”: Carlos Gardel. O ídolo de 11 entre dez argentinos estava nos Estados Unidos em 1934 para gravar programas para a rede NBC e também fazer o filme El Dia Que Me Quieras. Certo dia, em Nova York, ele se deparou com um rapazinho de 13 anos que levava para ele um presente que o pai, chamado Vicente mas conhecido também como “Nonino”, havia feito – uma escultura em madeira de um homem tocando violão. Gardel se impressionou com o jovem Astor e o convidou para fazer uma ponta no filme, como um pequeno jornaleiro. 

Mas não ficou só nisso: o jovem Piazzolla acabou virando guia e tradutor de Gardel em seu séjour nova-iorquino. E, um dia, cheio de coragem e ego inflado – características que o acompanhariam a vida inteira –, o aprendiz de músico resolveu mostrar ao ídolo como ele tocava bem o bandoneón. “Sente aí, tome um copo de leite e toque”, respondeu Gardel. E o rapaz tocou umas valsinhas e um tango. Ao final, Gardel foi direto: “Pibe, você toca bandoneón como um galego” – algo como um sueco dançando samba. E aconselhou-o a dar um toque mais argentino ao seu jeito de interpretar as melodias.

Mas aquilo foi um conselho de amigo, não um puxão de orelhas. Tanto que em 1935 Carlos Gardel convidou o garoto Piazzolla a acompanhá-lo em uma turnê que faria pela América Central e pela Colômbia. Don Vicente, pai preocupado, não autorizou que o filho, muito novo, viajasse. Foi sua sorte. Ao final daquela turnê, em Medellín, o avião que levava o cantor e seus músicos caiu. Ninguém sobreviveu.

No começo dos anos 1940, Astor Piazzolla já estava de volta a Buenos Aires. E, a partir daí, seu caminho e o do tango se cruzaram definitivamente – por mais que ele quisesse mesmo seguir o da música clássica. Mas precisava de dinheiro para custear seus estudos eruditos, então o melhor mesmo a fazer era ser tangueiro. Tão melhor que ele criou, em 1946, sua própria orquestra – e ali, suas composições já davam sinais do que anos escutando jazz e pensando em música erudita iriam fazer com seus tangos. Mas essas influências, no final das contas, só afloraram de vez quando Piazzolla voltou para Buenos Aires depois daquele período francês e das aulas e conselhos de Madame Nadia Boulanger – como lembrado na abertura desse texto.

Foi em finais dos anos 1950 que Astor Piazzolla criou seu octeto, mandou a tradição às favas e incorporou ao seu tango – ou ao “nuevo tango”, como chamou à época – os tais elementos jazzísticos e de música de câmara que fariam tanto o seu sucesso como o pavor de seus críticos. É justamente desse período aquela que talvez seja sua composição mais famosa, se não a mais linda: Adiós Nonino, composta em 1959, logo após a morte de Don Vicente Piazzolla.  “Talvez eu estivesse rodeado de anjos. Foi a mais bela melodia que escrevi e não sei se alguma vez farei melhor”, lembrou ele, vinte anos depois, sobre sua composição-síntese.

De loucos e poetas

Costuma-se dizer que somos aquilo que lemos, vivemos, conhecemos. Muito além de ser um clichê ou uma frase-feita, trata-se de uma verdade, que pode até ser relativizada, mas ainda assim será uma verdade. Com Astor Piazzolla podemos dizer que sua música é a confluência de tudo o que ele viu e ouviu na sua fase de aprendizagem. Filho de imigrantes italianos, vivendo em Nova York, ouvindo jazz, Bach e Mozart, se dividindo entre o bandoneón e o piano, estudando em Paris – e sempre com a sombra do tango a envolvê-lo. Deu no que deu, para a sorte da música do século 20 e para aquele tango que é feito hoje, inspirado na ousadia que arrepiou os cabelos dos ortodoxos.

Uma ousadia que talvez tenha chegado ao seu clímax em novembro de 1969, quando Piazzolla resolveu apresentar uma nova criação no Festival Ibero-Americano de Dança e Canção, que acontecia no auditório do Luna Park, no coração de Buenos Aires. A composição chamava-se Balada Para Un Loco, e tinha sido feita em parceria com o poeta uruguaio Horacio Ferrer. No dia da apresentação, ela foi interpretada por Piazzolla e pela jovem cantora Amelita Baltar – com quem o músico ficaria casado até 1974. E uma boa parte da plateia não entendeu nada. Naquele momento, Piazzolla deixava de lado as lamentações e a tristeza pela partida da mulher amada – ou desejada, sem sucesso – para adentrar no nem sempre firme terreno do surrealismo. Lembram da questão da “heresia”? Pois é, este talvez seja um dos maiores exemplos. Balada Para Un Loco não ganhou nenhum prêmio do festival, já que o júri popular se recusou a vê-lo como um tango. Mas conseguiu pelo menos duas coisas. Uma, impressionar um membro do júri de artistas que ficou durante toda a apresentação gritando: “Que filho da mãe, que filho da mãe”, quase tirando a concentração de Piazzolla (na verdade, não era bem isso o que era gritado, mas estamos em um jornal de família). Ao final das apresentações, o autor dos gritos entrou no camarim do músico e gritou de novo: “Que filho da mãe pode fazer uma música fantástica dessas?”. Era Vinicius de Moraes.

Outra conquista da Balada foi alçar de vez Piazzolla, com narizes torcidos da ortodoxia tangueira e tudo, a um sucesso que só faria aumentar pelas décadas que viriam. Nas semanas seguintes ao lançamento do disco com a canção, foram vendidas 200 mil cópias. E o músico passou a ser requisitado em teatros e festivais mundo afora – curiosamente, ou não, muitos deles de jazz –, principalmente depois que deixou Buenos Aires e foi viver na Itália, após um ataque cardíaco, em 1973. Gravou discos e mais discos – como o hoje clássico Libertango, de 1974 –, trabalhou com quintetos e orquestras sinfônicas, teve composições incluídas em trilhas sonoras de filmes – sua Fuga Número 9 pode ser ouvida em Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor – e pavimentou o caminho para novas variantes do tango, conquistando um público mais jovem e igualmente audacioso. Mas sua influência se tornou tão forte que uma dessas vertentes, a chamada “techno tango”, só foi se estruturar mesmo dez anos depois de sua morte.

A orquestra de Piazzolla – Foto: Wikimedia Commons

 

Tudo isso é história, e das boas. No final das contas, Astor Piazzolla, com toda aquela audácia que ele mencionou, acabou ganhando corações e mentes de portenhos de todas – ou quase todas – as estirpes. Ele também se tornou um ícone, por mais que muitas vezes pudesse ser visto como um anjo caído, todo vestido de preto e quase em transe enquanto dedilhava seu bandoneón. 

E é assim que ele pode ser visto no Paseo del Tango, uma passarela criada em um trecho de rua no bairro mais tangueiro de Buenos Aires, o Abasto – ali é onde está a casa em que viveu Carlos Gardel. Desde 2014 Piazzolla está ao lado de nomes que fizeram do tango a música de fundo de uma cidade e sua identidade, como Aníbal Troilo, Tita Merello, Roberto Goyeneche e Alberto Castillo. Afora a estátua de Gardel, de bronze, as outras, para um observador mais mal-humorado, até podem parecer com aqueles bonecos coloridos que se vendem em lojas de souvenir, só que com gigantismo. Mas isso não importa. Estão todos em ótima harmonia, às vezes sincopada, às vezes tumultuada por um bandoneón que foge um pouco da sintonia clássica, quase que a anunciar aquilo que seu instrumentista-cavaleiro negro revelou certa vez: “Tenho uma ilusão: que minha obra seja ouvida em 2020. E também no ano 3000. Às vezes, estou seguro disso, porque a música que faço é bem diferente”. Tinha toda a razão.


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