Pesquisador propõe "escuta ativa" da Cracolândia

Marcelo Carnevale desenvolveu iniciativas culturais e educativas com moradores da região da Luz, em São Paulo, para sua tese de doutorado, defendida na USP

 16/08/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 17/08/2023 as 18:21

Texto: Rebeca Fonseca*
Arte: Carolina Borin**

Aula na Companhia de Teatro Pessoal do Faroeste, no centro de São Paulo, ministrada pelo pesquisador Marcelo Carnevale para alunos regulares e para moradores da Cracolândia: “Falta compreender que a comunicação se dá no encontro, que é possível haver um diálogo mais horizontal de troca”, diz Carnevale - Foto: Diversitas

“São Paulo é uma cidade que dificulta a ocupação do espaço público. Para mim, sempre foram um paradoxo os discursos da segurança pública e do desenvolvimento da cidade, com uma cultura que investe muito no esvaziamento da convivência no lugar comum”, diz o pesquisador Marcelo Carnevale, autor do recém-lançado livro Vizinhança: a Palavra como Território de Coexistência. Com 286 páginas, a obra é resultado da tese de doutorado de Carnevale, defendida em 2021 no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e está disponível gratuitamente no site da Editora V&V, que publica o livro.

Para o pesquisador, uma das experiências mais potentes da vida humana é “avizinhar-se das pessoas, dos lugares e das coisas no ambiente urbano”. Essa é uma forma de se abrir para um espaço de surpresa e interação nas ruas. “A princípio, a gente se surpreende, porque vai na contramão da expectativa de controle das situações. A rua o devolve para um corpo a corpo em que você precisa ter a humildade de lidar com as pessoas”, detalha Carnevale.

A “vizinhança”, porém, possui um uso limitado e comumente está associada a um recolhimento egoísta e um individualismo exacerbado, diz o pesquisador. Em sua tese, ele propõe, então, a ampliação do conceito como forma de buscar outros modos de inserção na cidade. “Ocupar o espaço público, dialogar, escutar a cidade e seus habitantes” eram os objetivos de Carnevale na tese.

Marcelo Carnevale - Foto: Reprodução

O pesquisador Marcelo Carnevale: “Se for feito um mapeamento social e, a partir daí, houver uma articulação de acolhimento e serviços voltados para diferentes perfis de moradores, a gente pode avançar no bem-estar para a região da Luz” - Foto: Reprodução

Para investigar que tipo de vizinhança era possível experimentar na capital paulista, o pesquisador fez um trabalho de campo na chamada “Cracolândia” entre 2017 e 2019. As primeiras incursões no espaço já haviam ocorrido em 2015, motivadas pelo interesse em redigir um perfil do diretor da Companhia de Teatro Pessoal do Faroeste, Paulo Farias. Posteriormente, o Teatro Faroeste, assim como a Companhia de Teatro Mungunzá, tornou-se parceiro das iniciativas de Carnevale na região da Luz, onde se situa a Cracolândia.

Durante a experiência de campo, o pesquisador praticou o exercício da chamada “escuta ativa” e aprendeu formas de prática da vizinhança que podem transformar a vida pública da região, como a tecnologia comunitária. “Esse é um arranjo social de pessoas excluídas da estrutura do poder público que, por obra de uma rede de demandas locais, conseguem ter um nível de entrosamento e troca que é muito potente”, insiste Carnevale.

A experiência de campo

O pesquisador produziu aulas na região da Luz em parceria com o Núcleo de Estudos das Intolerâncias, Diversidades e Conflitos (Diversitas) da FFLCH, do qual ele é pesquisador. Segundo Carnevale, o núcleo tem a proposta de encontro com a diversidade por ser interdisciplinar e agregar um corpo docente de diferentes cursos em suas disciplinas. “O Diversitas permite um exercício sobre o que é efetivamente a pesquisa e o diálogo com a cidade, o que traz para a gente outro tipo de abordagem”, diz.

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As disciplinas O Lugar das MemóriasO Lugar das Redes e O Lugar das Performances foram ministradas para alunos regulares e para membros da comunidade da Cracolândia. “A gente saiu da rotina acadêmica, com uma média de 20 pessoas frequentando, para ter um público de 80 pessoas nos teatros”, conta Carnevale. As salas de aula foram substituídas pelos auditórios da Companhia de Teatro Pessoal do Faroeste, na Rua do Triunfo, no centro de São Paulo.

“A prática das disciplinas transformou a região degradada, que reproduz um sistema de confinamento dos usuários. A gente ingressou nessa região como extensão do campus universitário à medida em que ela nos acolheu para o desenvolvimento do programa”, afirma o pesquisador. Além das aulas, Carnevale conduziu sessões de terapia comunitária para agentes de saúde, assistentes sociais e ativistas.

Nesse período, a rotina do pesquisador incluía um mapeamento da rede de pessoas que atuavam na cultura, na saúde e na assistência social, assim como o preparo das aulas e a articulação com coletivos da região. A Casa Florescer, que acolhe mulheres transexuais e travestis em situação de vulnerabilidade, a Craco Resiste, que atua contra a violência policial, e a Blocolândia, que organiza o carnaval, foram importantes parceiros durante a pesquisa.

A Cracolândia, no centro de São Paulo: para o pesquisador Marcelo Carnevale, a arte e a cultura também contribuem para o bem dos moradores da Cracolândia - Foto: Reprodução/Pedro Durán via Mílton Jung/Flickr

No momento de escrita da tese, Carnevale se mudou da Vila Madalena para o Bom Retiro, um dos bairros da região da Luz. O argumento central da pesquisa é que a palavra deve ser um território de coexistência. “Isso traduz um exercício de escuta ativa da cidade; é a possibilidade de se colocar no território com uma abertura para acolher os diferentes ruídos, os diferentes jeitos de se viver e as diferentes vozes”, explica Carnevale. “É um exercício de ocupação do espaço público, em que a palavra passa a criar um território de coexistência. A prática dialógica permite que você se avizinhe.”

Da escuta ativa às políticas públicas

“A gente vive em um País onde o choque de classes e o colonialismo ainda são estruturais, e estamos longe de dar conta disso enquanto não encararmos mais seriamente a reparação histórica para promover a equidade e o reconhecimento dos sujeitos invisibilizados”, diagnostica Carnevale.

“Falta compreender que a comunicação se dá no encontro, que é possível haver um diálogo mais horizontal de troca”, defende. O pesquisador explica que, no território da Cracolândia, existem moradores com diferentes níveis de vulnerabilidade social e demandas distintas, que são afetados pela política exclusivamente voltada para o combate ao tráfico de drogas.

“Se for feito um mapeamento social e, a partir daí, houver uma articulação de acolhimento e serviços voltados para diferentes perfis de moradores, a gente pode avançar no bem-estar para a região da Luz”, argumenta o pesquisador, defendendo uma assistência social mais ativa.

Capa do livro Vizinhança: a Palavra como Território de Coexistência, de Marcelo Carnevale - Foto: Reprodução/Editora V&V

Para Carnevale, a arte e a cultura também contribuem para o bem viver dos moradores da Cracolândia. Outra atividade realizada por ele no território foi a recriação do curta-metragem Boca do Lixo Cinema (1976), no qual o diretor Ozualdo Candeias acompanha seus colegas de cinema em uma festa de final de ano na Rua do Triunfo.

“Essa é outra forma de rearticular um território que hoje está totalmente solapado em uma única versão dele, que é a miséria e o crack”, diz o pesquisador, lembrando o passado da região. Entre as décadas de 1960 e 1980, um polo cinematográfico se desenvolveu no espaço da Luz e foi denominado Boca do Lixo. Carnevale acredita que reavivar e reverenciar essa memória também é uma forma de praticar a assistência social.

O livro Vizinhança: a Palavra como Território de Coexistência, de Marcelo Carnevale, está disponível gratuitamente, na íntegra, no site da Editora V&V.

*Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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