


Para o escritor argentino Jorge Luís Borges, o paraíso seria uma enorme biblioteca. Já para o pensador e tribuno romano Cícero, uma casa sem livros era como um corpo sem almas. E o escritor inglês Holbroock Jackson, autor do clássico sobre o amor aos livros The anatomy of bibliomania, escreveu um alentado ensaio explicando como um livro pode mexer com os nossos cinco sentidos. Afinal, um livro é muito mais do que um feixe de papel encadernado com palavras encadeadas – não. Ele vai muito além disso, atravessa fronteiras e permite uma série de interpretações. É só o leitor querer. Quem quiser pôr à prova essa afirmação precisa, então, visitar a exposição Tarefas Infinitas, em cartaz em dois endereços distintos: a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, na Cidade Universitária, e o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. São mostras-irmãs, nascidas de uma mesma ideia: a exposição original que aconteceu em 2012 na emblemática Fundação Calouste Gulbenkian, um dos mais importantes centros artísticos de Lisboa. “A exposição é um ensaio sobre o livro e o que ele pode nos apresentar”, escreveu o curador português da mostra, o professor e crítico de arte Paulo Pires do Vale. “Mais do que uma exposição de livros, é uma reflexão sobre a nossa relação com eles.”
Ouça no link acima entrevista de Rosely Nakagawa, uma das curadoras da mostra Tarefas Infinitas, transmitida pelo programa Via Sampa, da Rádio USP (93,7 MHz)
E essa reflexão à qual se refere nasce justamente na simbiose entre o livro e a expressão artística, sobre os limites permanentemente provocados e reconfigurados da arte e do livro, remetendo a um diálogo infinito, tanto quanto as tarefas que inspiram e dão nome à mostra. “A ideia é misturar o contemporâneo com o antigo, com o clássico, para criar essa provocação e uma reflexão sobre o livro, algo que é muito utilizado na arte contemporânea”, afirma a cocuradora da mostra Rosely Nakagawa em entrevista dada ao programa Via Sampa, da Rádio USP . “O próprio sentido do livro já nos leva a refletir.”
Galeria de imagens da exposição no SESC
























Esse “sentido” do livro pode ser melhor avaliado, claro, na própria mostra, seja na Biblioteca Mindlin ou no Sesc. Nesses dois espaços encontram-se não apenas obras históricas e raras, mas também livros-objetos que remetem justamente a esse intrincado relacionamento entre o livro e a arte, ou o livro-arte, ou o livro como artefato lúdico. É o caso, por exemplo, dos “poemóbiles” criados pelo poeta concreto Augusto de Campos e pelo artista plástico e ex-professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Julio Plaza. Os poemóbiles, expostos na Cidade Universitária, são um bom exemplo não só da fronteira fluida entre livro e arte mas também de como essa fronteira pode ser cruzada em direção a uma “transgressão” que amplifica os sentidos do livro.
Essa transgressão artística também pode ser medida em outras obras, como o volume cent mille milliards de poèmes, do poeta surrealista francês Raymond Queneau. O livro, exposto no Sesc, traz os poemas em páginas retalhadas, como se cada recorte poético, cada estrofe, tivesse vida própria, independente do livro que o contém. Mais do que um livro para se ler, é uma obra para se sentir. Aí reside toda a diferença – e a própria alma da exposição.
A mostra traz desde vídeo-instalações a obras curiosas – como o livro-banco que José Mindlin mandou fazer para sua mulher Guita, quando ainda namoravam na Faculdade de Direito da USP e ela reclamava que as carteiras da sala de aula não deixavam que ela, baixinha, encostasse os pés no chão – e peças raras, como a Arte da grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, escrita pelo padre José de Anchieta e publicada em 1595, ou a petição de 1774 de Bartolomeu de Gusmão (conhecido como “o padre voador”) sobre o instrumento que inventou “para andar no ar” – um balão.
Galeria de imagens da exposição na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin





















Mas traz também preciosidades que os tempos tecnológicos atuais talvez não permitam mais a existência. É o caso das primeiras provas tipográficas do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos. Mas o que a tecnologia a ver com isso? Tudo. Nos dias atuais, se o autor desistir de uma frase ou trecho de livro, se arrepender de ter escrito algo ou simplesmente quiser acrescentar um novo parágrafo, basta entrar no computador, deletar o que não queria e incluir um novo trecho, por exemplo. Muito prático, sem dúvida. Mas asséptico e, digamos, “desumanizado”. Na mostra, vemos as provas corrigidas e anotadas a mão por Graciliano, uma intervenção que chega ao seu paroxismo no próprio título da obra: originalmente, ela se chamava “O mundo coberto de penas”. Graciliano, com uma caneta de tinta preta, riscou todas as vezes em que esse título apareceu e escreveu por cima o “Vidas secas” que faria a sua fama.
Ter contato com esse tipo de interferência autoral, ou ver os originais manuscritos – com uma letra bem desenhada em tinta preta – de O quinze, de Rachel de Queirós, dá a sensação exata de que o livro em si foi além da página impressa, mas, sim, ficou impregnado de vida. E, no final das contas, talvez essa seja a tal tarefa infinita de um livro, conceito emprestado do filósofo alemão Edmund Husserl: ter vida, ser vida. Um livro se faz e se refaz. Sempre.
A exposição Tarefas infinitas fica em cartaz até 15 de setembro na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP (Rua da Biblioteca, s/n, Cidade Universitária, em São Paulo) e até 27 de outubro no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc (Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4º andar, Bela Vista, em São Paulo). Entrada grátis.