Livro traz detalhes da mais antiga arte feita pelos jesuítas no Brasil

Obra aborda as talhas jesuíticas da Matriz de São Vicente, no litoral paulista, datadas do século 16

 21/05/2024 - Publicado há 1 mês     Atualizado: 23/05/2024 as 14:20
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Capela-mor da Matriz de São Vicente atualmente - Foto: Reprodução/As talhas jesuíticas da matriz de São Vicente/Victor Hugo Mori

Em 2002, foram redescobertas, no acervo da família do arquiteto polonês Georg Przyrembel (1885-1956), as obras de arte jesuítica mais antigas das Américas, um dos primeiros testemunhos de arte produzida pelos irmãos da Companhia de Jesus. Trata-se de 25 fragmentos de talhas de altares feitas em 1559 para a Igreja Matriz de São Vicente, no litoral paulista, a primeira vila fundada no Brasil. Doado ao Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) em 2023, esse tesouro artístico e histórico é tema do livro As Talhas Jesuíticas da Matriz de São Vicente – 1559, organizado por Percival Tirapeli – mestre e doutor pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – e Victor Hugo Mori, que acaba de ser lançado pelas Edições Loyola.

Segundo os organizadores do livro, as talhas foram feitas por indígenas que a Companhia de Jesus tentava integrar a seus valores cristãos, com a supervisão de jesuítas, no colégio fundado pelo padre Leonardo Nunes, conhecido como Abarebebê, “padre voador”. Elas misturam os símbolos clássicos da arte religiosa com elementos tipicamente brasileiros, indicados pelos padres, incluindo cariátides (figuras femininas esculpidas como colunas), serafins, uvas, folhagens de acanto, volutas, animais (semelhantes a papagaios e quatis) e a flora tropical (cajus e cipós).

A maior inspiração iconográfica para as talhas foi o estilo grotesco, difundido por gravuras dos Países Baixos e da Antuérpia, que os indígenas interpretaram livremente e relacionaram com seu entorno. Quando a ordem chegou ao Brasil, em 1549, o “modo nostro” – a forma de viver dos irmãos, que influenciava sua arte e arquitetura – era um projeto em construção, e a arte era vista como um instrumento de evangelização.

As talhas e cariátides vicentinas, de 1559 a 2024 

 

Realizados na época da construção da Igreja Matriz de São Vicente (1555-1559), os fragmentos foram desmontados no século 18 e depositados na base da torre da Igreja. Em 1927, eles foram dados ao arquiteto Georg Przirembel como pagamento por serviços prestados na reforma da Igreja e da casa pastoral. Em 1972, eles foram registrados pela primeira vez pela crítica de arte e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Aracy Amaral, que então fazia o catálogo de coleções particulares para o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em São Paulo. No ano passado, preocupada com a preservação dos fragmentos, a família do arquiteto fez a doação para o MAS-SP. 

As Talhas Jesuíticas da Matriz de São Vicente – 1559 aborda também a história da Igreja Matriz de São Vicente, destaca seu acervo histórico e traz informações sobre o restauro da igreja, após um incêndio que a destruiu parcialmente em 2000. Para a produção da obra, Percival Tirapeli, que é professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), e Victor Hugo Mori, arquiteto do Iphan, contaram com a colaboração de outros profissionais e pesquisadores, que escreveram artigos sobre diferentes aspectos ligados aos fragmentos. Entre esses colaboradores estão Francisco Lameira, da Universidade do Algarve, em Portugal, Gauvin Alexander Bailey, da Queen’s University, no Canadá, Rosemarie Erika Horch, da USP, Julio Moraes, restaurador, Gabriel Frade, editor-chefe das Edições Loyola, Maria Elisa Linardi, jornalista, e Sidney Damasio Machado, professor de teologia no Brasil, Espanha e Itália.

 

Como se lê em As Talhas Jesuíticas da Matriz de São Vicente, os indígenas, supervisionados por irmãos entalhadores, usavam no seu trabalho diferentes goivas para obter distinções de textura. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de São Paulo, apontou que a maioria dos fragmentos vicentinos foi feita com uma única peça de cedro. A simbologia das cenas, animais e flora presentes nos fragmentos misturam mitologia grega e israelita, elementos paleocristãos, e a própria vivência dos artesãos indígenas. A modelo para as cariátides poderia ser uma adolescente indígena, com a tez alongada e olhos amendoados. A própria técnica da obra tem simbiose entre as culturas: o trono da Imaculada Conceição, por exemplo, é oco como o feitio das canoas indígenas. Os fragmentos vicentinos estão ligados à tradição do estilo manuelino, carregados de simbologia medieval e romântica ibérica.

A matriz de São Vicente e seu rico acervo colonial

A Igreja Matriz São Vicente Mártir foi construída em 1559 e dedicada ao patrono da vila, Vicente de Zaragoza. Em meados do século 18, a população construiu uma nova igreja no terreno da primeira, que se encontrava arruinada. Concluído em 1759, o novo templo recebeu os mesmos materiais e técnicas de construção da primeira igreja. “Em pleno apogeu do Barroco e das igrejas douradas de Minas Gerais, a vila mais antiga do Brasil construía uma matriz como as primeiras igrejas quinhentistas”, escreve Victor Hugo Mori. As talhas jesuítas, quatro colunas e um sacrário foram reaproveitados da antiga igreja jesuíta. Reformada no século 19 e 20, o estilo colonial foi substituído pelo neocolonial em voga na época.

Victor Hugo Mori - Foto: Reprodução/Habitar Habitat/Youtube

Um dos destaques do antigo acervo da igreja é a imagem Imaculada Conceição, uma peça de barro cozida policromada realizada por João Gonçalo Fernandes em 1560. Até a descoberta dos fragmentos vicentinos, era a imaginária mais antiga feita no Brasil, e permaneceu na sacristia até ser transferida para o Museu de Arte Sacra de Santos – onde se encontra hoje -, para ser restaurada e exposta. Diferente das talhas, que referenciam elementos brasileiros, a Virgem retratada é uma portuguesa de rosto cheio e cabelos soltos. O mesmo escultor também realizou um Santo Antônio de Pádua e um São Vicente Mártir, patrono da igreja, que provavelmente eram expostos nos altares colaterais.

 

O incêndio que atingiu a igreja no ano 2000 queimou a capela-mor, seu altar com baldaquino e a nave e danificou o forro, o telhado, o revestimento interno e parte do piso. O imaginário religioso foi transformado em carvão e quase todas as decorações neocoloniais foram destruídas. O restauro começou em 2002, com o arquiteto Jaime Calixto, e as imagens religiosas, em 2007, chefiado por Julio Moraes e supervisionado por Victor Hugo Mori. O objetivo era conciliar a preservação de testemunhos do histórico do elemento restaurado com as expectativas da comunidade de reabilitação para uso litúrgico. Por isso, as peças carbonizadas foram restauradas só na parte da frente; a lateral e traseira documentam o dano sofrido pelo incêndio. Alguns elementos foram reconstituídos com recursos de marcenaria e acabamento modernos para garantir a estabilidade física da peça. Atualmente, a matriz é a única edificação íntegra do período colonial de São Vicente.

Fotografias anteriores ao desastre indicavam o estado da igreja, mas os restauradores optaram pela espacialidade de 1759, já que era impossível refazer a ornamentação neocolonial. “A igreja matriz hoje se apresenta despojada na sua simplicidade, retratando as pessoas comuns da empobrecida vila de São Vicente que a edificaram com as próprias mãos sem qualquer recurso do padroado real”, escreve Victor Mori.

As Talhas Jesuíticas da Matriz de São Vicente – 1559, de Percival Tirapeli e Victor Hugo Mori, Edições Loyola, 200 páginas,  

*Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro.


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