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De acordo com um mito grego, certa vez Hades – o deus do mundo dos mortos – levou a Zeus a seguinte reclamação: almas justas estavam sendo lançadas no Tártaro, lugar de sombras e escuridão, enquanto almas injustas partiam para a bem-aventurança eterna das Ilhas Afortunadas. O deus supremo deu razão a Hades e esclareceu que o erro se devia ao fato de que, para saber se uma pessoa era justa ou injusta, o julgamento estava sendo feito por seres viventes, ou seja, almas vestidas em corpos – invólucros que se prendem ao mundo sensível e a suas paixões e interesses. Para resolver a situação, Zeus ordenou que o julgamento de cada ser humano fosse feito somente após a morte, porque, após a morte, quem julga e quem é julgado estão nus, despidos de corpos. Para que se julgue com justiça, “o juiz deve estar nu, morto”.
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Esse mito está na base da concepção de justiça elaborada pelo filósofo grego Platão (427-347 antes de Cristo), segundo o livro O Juiz Nu – A Morte e a Justiça em Platão e na Tradição Platônica Antiga, de Jonathas Ramos de Castro, que acaba de ser lançado pela Editora Dialética. Escrita como tese de doutorado defendida em 2020 na Faculdade de Direito da USP – sob orientação do professor Ari Marcelo Sólon –, a obra extrai das ideias de Platão críticas e recomendações para os juízes do século 21.
Entre essas críticas e recomendações está a ideia de que, assim como no mito grego, ninguém pode julgar sem antes se “purificar”, “libertar sua alma”, separando-a do corpo, que é passível de ser seduzido pelas riquezas e por discursos bem constituídos. Em outras palavras, nenhum juiz julga corretamente sem praticar o “exercício da morte”. “Morrer é se preparar para dizer a verdade”, escreve Castro. “Esse preparar a si mesmo para o discurso verdadeiro, no platonismo, é o exercício, ou a prática, ou a ascese, da morte.”
Uma das formas de praticar o “exercício da morte” – a separação da alma em relação ao corpo – é a educação nas ciências, segundo Platão e a tradição platônica. Essas ciências correspondem à matemática – incluindo aritmética, geometria, estereometria (estudo do volume dos sólidos), astronomia e música – e à dialética, a mais perfeita das ciências. “A educação é uma correção do olho da alma, quando este ‘não está na posição correta e não olha para onde deve'”, escreve Castro, reproduzindo trechos da República, uma das principais obras do filósofo grego. “Pela educação, o olho da alma é desviado ‘das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do ser e da parte mais brilhante do ser’. A educação, portanto, está intimamente relacionada à ascensão da alma, isto é, ‘sua elevação até a realidade’.”
Mas a educação nas ciências não é a única forma de praticar o exercício da morte. Outra maneira de separar a alma do corpo é a educação nos prazeres ou nos “assuntos do amor”. Agora citando outra obra-prima de Platão – o diálogo Banquete –, Castro destaca a importância do amor, que é purificação. “Amar é amar coisas belas, que são aquelas que nos proporcionam prazeres, os quais, se direcionados corretamente por uma educação erótica fundada na medida, nos conduzem a experimentar prazeres superiores e a amar coisas belas superiores”, escreve. “Nesse caminho, a alma se separa do corpo e, subindo os degraus da scala paradisi erótica, aproxima-se do inteligível. Assim, o amor purifica a alma: sendo amor do belo, ele conduz a alma da beleza dos corpos à beleza do inteligível; sendo o belo um prazer, o amor conduz a alma do prazer do corpo – que a prende ao corpo e a torna corpórea – ao prazer do inteligível.”
Ponto culminante do “exercício da morte”, esse movimento em direção ao “prazer do inteligível” só é possível àqueles que se dedicam à filosofia, aos filósofos, diz Platão. Por isso os filósofos – e não os juristas – é que são realmente justos e conhecedores da justiça. “Assim como é o verdadeiro político, o filósofo é o verdadeiro juiz, e pela mesma razão: porque conhece a ciência da justiça e, mais fundamentalmente, porque pratica o exercício da morte. Não há ciência da justiça sem exercício da morte”, explica Castro.
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Sem se exercitar na morte, os juízes não se diferenciam dos sofistas, diz Platão em outro de seus diálogos, o Teeteto, numa passagem em que critica os dikastaí, os membros dos tribunais de Atenas em sua época. Como escreve o filósofo grego, tanto os juízes como os sofistas se utilizam da retórica – que equivale a um discurso bajulador –, vivem nos tribunais, usam linguajar solene e complicado e se prendem a leis e decretos da mesma forma como a alma se prende ao corpo.
Para Castro, essa crítica de Platão aos juízes não consiste em dizer somente que eles, sendo sofistas, falam do que não sabem e não vivem. “Ela consiste também, e mais fundamentalmente, em dizer que os juristas, pretendendo falar da justiça, não praticam o exercício da morte. Que eles não buscam purificar a própria alma, deixando para trás o erro e o vício provocados pela ausência da reta razão entre a alma e o corpo, ausência essa que faz com que, na alma, o concupiscível e o irascível prevaleçam sobre o racional. Que, neles, a alma se deixa tão facilmente seduzir pelo sonho narcísico do corpo, pela festa dionisíaca do corpo, descurando da ordem que a faz se mover no compasso da alma do mundo.”
Segue daí a exortação aos juízes que Castro faz no final de sua obra, sempre citando Platão: “Mais do que juristas, tornem-se filósofos”.
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Orfeu e Pitágoras
As ideias de Platão sobre o “exercício da morte” não têm origem na religião pública da Grécia antiga – em que está baseada a mitologia de Homero e Hesíodo, por exemplo –, uma vez que ela não fala de purificação e libertação, como mostra Castro em O Juiz Nu. Antes, elas devem ser buscadas na religião órfica e no pitagorismo. À diferença da religião pública, que destinava todos os seres humanos para o mesmo lugar de sombras, os órficos tinham a crença em destinos diferentes, um bom e um ruim, o bom para o puro e livre, o ruim para o impuro e escravo. Já entre o grupo dos pitagóricos mathematikoí (“alunos”) – surgidos de uma cisão do pitagorismo ocorrida no século 5 antes de Cristo –, as noções de purificação e libertação foram esvaziadas do seu conteúdo mágico-ritual para se ligar às ciências, como a geometria, o verdadeiro meio de purificação. “Platão subtraiu os componentes mitológicos e rituais presentes em suas fontes (a culpa original pela morte de Dioniso, as iniciações, fórmulas etc.), mantendo somente os componentes científico-racionais (as matemáticas) e acrescentando a estes o componente filosófico-racional (a dialética)”, defende Castro.
“Ao longo de todo o trabalho, em verdade, o ‘exercício da morte’ é muito mais um ‘exercício de vida plena’, pois ‘morte’ será compreendida como purificação (kátharsis) da alma”, escreve no prefácio do livro o professor Eduardo Bittar, da Faculdade de Direito da USP. “Aqui, como não poderia ser diferente, a filosofia exerce uma profunda ruptura na forma de ver e perceber o tema da justiça; ela assume o sentido profundo de ascese de vida, de compromisso com a justiça, criando uma ruptura com a vida comum, permitindo que seja possível renascer nesse novo nível de compreensão.”
Como apêndice, O Juiz Nu traz a tradução de Por Que Platão Disse Que Deus Sempre Geometriza, de Plutarco, autor do século 5 da era cristã, feita por Castro diretamente do texto grego, que constitui um exemplo da tradição platônica sobre o “exercício da morte”.
O Juiz Nu – A Morte e a Justiça em Platão e na Tradição Platônica Antiga, de Jonathas Ramos de Castro, Editora Dialética, 140 páginas R$ 54,90.