O longa-metragem Hiroshima Mon Amour é filme ou literatura? E quais são as relações possíveis entre os dois campos? Esses são questionamentos que abrem os ensaios publicados na nova edição da revista Literatura e Sociedade, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, lançada em dezembro passado. A revista comemora os 60 anos da primeira exibição, em 1959, do filme franco-japonês dirigido por Alain Resnais, com roteiro de Marguerite Duras. A publicação tem apoio do Consulado Geral da França e conta com a parceria do Departamento de Letras Modernas da FFLCH.
A revista reúne nove estudos sobre a relação entre cinema e literatura à luz de Hiroshima Mon Amour. O longa retrata um romance entre uma atriz francesa, interpretada por Emmanuelle Riva, e um arquiteto que conheceu na cidade de Hiroshima, no Japão, onde ela gravou um filme sobre paz. Segundo a organizadora da edição, a professora da FFLCH Cleusa Rios Pinheiro Passos, em seu texto de apresentação, “Marguerite Duras soube enfocar uma das maiores destruições do século 20, que teve duas cidades (Hiroshima e Nagasaki) como alvo de um bombardeamento atômico, e, de forma paradoxal, criar diálogos poéticos, elaborando fragmentações exemplares com o intento de apreender a memória, e com ela, o esquecimento”.
No filme, a memória da personagem feminina é trazida aos poucos, com o então inovador uso dos flashbacks, e reconstitui as lembranças da perda do amante alemão na guerra. Cleusa escreve que a memória-esquecimento se alia ao jogo de amor e morte que enreda o casal amoroso da trama, tornando-se matéria relevante na busca, para ela impossível, de verbalizar seja o horror da devastação de Hiroshima, seja a dor singular da mulher pela perda afetiva, sofrida durante a Segunda Guerra. “Até que ponto esquecer é necessário e até que ponto se pode escapar ao esquecimento?”, questiona.
Em outro artigo publicado na revista, Panorama da Recepção Crítica de Hiroshima Mon Amour no Brasil, a pesquisadora Alessandra Brum, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais, se baseia em uma coletânea de materiais jornalísticos – de periódicos a revistas especializadas em cinema – para analisar as críticas ao longa feitas no início da década de 1960, a partir da sua primeira exibição no Brasil, no Cine Arte-Palácio de Belo Horizonte, em janeiro de 1960.
A sua pesquisa contabilizou 52 artigos dos quais o filme era o assunto principal, número que a autora considera expressivo. “É uma exceção dentro do trabalho da crítica da época, uma vez que poucos filmes merecem tamanha atenção.” Alessandra destaca que grande parte dos artigos publicados busca preparar o leitor para assistir ao filme, partindo da ideia de que a produção não era facilmente compreensível. Essa dificuldade, alguns críticos atribuem ao “excesso de literatura” presente no roteiro de Duras, em detrimento da linguagem visual do cinema.
Alessandra ainda destaca que, em sua pesquisa, encontrou críticas feitas apenas por homens. “É um filme feminino não apenas por ter sido escrito por uma mulher, mas por ter como protagonista e condutora incondicional da narrativa uma mulher. Portanto, a ausência de críticas escritas por mulheres é uma grande lacuna”, afirma.
Já Maurício Ayer, em seu artigo Reverberações de Hiroshima em Marguerite Duras: a (Geo)Política a Partir do Corpo, traça um paralelo entre a representação do corpo e a geopolítica na construção da trama. Segundo ele, o filme funde duas dimensões a princípio inconciliáveis: a grande história, da qual evoca o maior evento geopolítico do século 20, e a dimensão afetiva e pessoal. Tal relação se dá através de uma comparação simbólica entre o ficcional da narrativa e o real evento histórico.“Todo o discurso de Duras sobre a questão política passa diretamente pelo corpo, pela verdade do corpo, sua capacidade de afetar-se e afetar o mundo, o contrário de uma indiferença ou mesmo da racionalização. É no contato direto com a riqueza de possíveis do corpo que Duras encontra a política, um campo onde se constrói o comum”, defende.
Em outra seção da revista, Literatura e Sociedade traz duas traduções inéditas em português. Uma delas é A História Literária e a Sociologia, palestra de 1904 do historiador francês Gustave Lanson (1857-1934), vertida para o português por Yuri Cerqueira dos Anjos. A outra tradução é Fato Literário, do crítico literário russo Iúri Tyniánov (1894-1943), feita por David Gomiero Molina.