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O visitante vai caminhando entre as curvas desenhadas por Oscar Niemeyer e não sabe se olha para o grande olho amendoado – uma torre envidraçada – ou para o reflexo da construção e das árvores no lago artificial ao redor do pilar amarelo. Nos grandes vãos da edificação, a arquitetura faz um pacto com a arte moderna.
Entre as curvas da passarela externa é possível ver o céu, o sol, a luz do entardecer. O desenho de Oscar Niemeyer propicia a contemplação. Nesse ambiente minimalista, onde flui o silêncio, 21 artistas, sob a curadoria de Michiko Okano, professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação do Centro de Estudos Japoneses da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, estão apresentando a mostra “Olhar InComun: Japão revisitado”. A arte de todos traduz o olhar de quem vive no entre-espaço do Brasil e do Japão e tem o nascer e o pôr-do-sol como referência em seu processo de criação.

“A exposição nasceu de uma indagação sobre a denominação artista nipo-brasileiro, que engloba desde os japoneses até os seus descendentes nascidos no Brasil, que, atualmente, estão na quinta geração”, explica Michiko. “Além de possuir o laço sanguíneo com o Japão, os artistas contemporâneos participantes desta exposição – japoneses, filhos e netos de japoneses ─ apresentam olhares entre-espaços, isto é, entre o Brasil e o Japão, embora em diversos níveis e modos de envolvimento com o universo japonês.”
O visitante sobe a rampa interna e se depara com uma parede branca com a caligrafia japonesa shodô, que significa “Caminho da Escritura”, pintada pelo artista japonês Futoshi Yoshizawa. Escreveu: 黄イペーととも咲き誇る桜かな. “É uma poesia de sua autoria, denominada Trajetória Multidimensional (2016), trazendo a temática da imigração e da convivência dos japoneses no Brasil. Convém lembrar que tanto a poesia quanto a caligrafia ocupam um lugar de destaque na arte nipônica”, observa a curadora.
Interessante observar os traços e a forma como Yoshizawa movimenta o pincel. Um gesto preciso, que exige disciplina, precisão e sutileza. O calígrafo imprimiu na parede um haicai, poema japonês com 17 sílabas:
Com Ipês Amarelos
florescem briosas
as cerejeiras
Michiko orienta os alunos da pós-graduação em Artes da USP e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Quando iniciei a minha pesquisa sobre os artistas nipo-brasileiros, em 2013, queria descobrir em que medida a representação da ‘japonesidade’ correspondia à proximidade sanguínea do artista com o Japão”, explica. “Contudo o desenvolvimento do trabalho mostrou que tal questão é mais complexa e exige abranger as singularidades, que devem ser analisadas e enredadas. São várias ‘japonesidades’ que confluem, dependendo da vida de cada artista: a da experiência de vida no Japão, a da memória dos familiares e grupos de convivência, a da paixão pela cultura nipônica, a da negação de certos aspectos japoneses ou, ainda, a da idealização do Japão.”
Uma grande tribo
Nas imagens da montagem da exposição, é possível ver a movimentação dos artistas e da participação do público. Na parede, outro haicai assinado pela poeta Marília Kubota. Ela orienta: “Nesta tribo/ nada é proibido/ siga os sentidos”. O código verbal, como bem lembra a professora Michiko Okano, é frequente nas imagens.
O Japão notabiliza-se pela estética de dizer o máximo com o mínimo de palavras, tida como uma das formas elegantes e requintadas de comunicação.”
É realmente uma grande tribo. Emociona ver o grande dragão grafitado na parede branca. Uma figura imponente e um desenho invasivo, como compete ao grafite, também presente na arte pop japonesa. Na arte brasileira, nem se fala. Basta ver os muros da cidade. O artista Atsuo Nakagawa traz a imagem símbolo. “É o masculino e enérgico dragão que ressurge como um resgate dos elementos nipônicos”, explica Michiko. Nakagawa nasceu e viveu em Kyoto. Mas há três anos veio morar no Brasil. “O dragão é o único animal mitológico do zodíaco chinês, possante e provocador de chuva. Nesta mostra ele surge representando a street art.” O artista faz questão de avançar as paredes e invade o espaço de outro artista para assinar seu nome.
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Uma liberdade que se contrapõe à estética da arte zen, voltada ao mínimo e ao essencial da existência, como na obra da nipo-brasileira Mai Fujimoto. “Possuidora de uma sensibilidade delicada e refinada, ela reinterpreta, em uma das suas três obras expostas, com o curioso título então aplicam o ouro para evidenciar suas falhas, fraturas, defeitos (2014), o kintsugi ou arte de remendar. Trata-se de uma técnica japonesa de reparar as peças de cerâmica quebradas por meio do preenchimento das fendas produzidas com uma mistura de cola e pó de ouro”, esclarece a curadora. “Desse modo, a peça é recomposta ao valorizar a naturalidade das fissuras criadas, o que traduz a postura de aceitar a desconstrução e a fragmentação ocorridas ao acaso. É o ato de aceitar a efemeridade das coisas, de estar disponível para as mudanças e de celebrar a imperfeição.”
A mostra é um misto da ancestralidade das delicadezas do Japão e a vibração das cores do cotidiano do Brasil. “Olhar InComun” desperta as lembranças daqueles que viram seus avós no cotidiano das lavouras. A instalação da paranaense Sandra Hiromoto tem nove tambores pintados com estereótipos femininos da xilogravura ukiyo-e. Faz uma referência aos tambores ou ofuros muito usados nos sítios e fazendas. “Como não recordar do banho quente nesses tambores preparados pela minha avó para toda a família? Um ritual de fim de tarde. Primeiro, banhavam-se os homens, depois as mulheres e, por último, as crianças. Todas se enfileiravam depois de passar horas correndo na plantação branquinha de algodão para relaxar nos ofuros. Enxaguavam-se com uma caneca. E, depois de limpos, mergulhavam, um por vez, nos tambores que ficavam sobre a lenha esquentando e esquentando.”
Na última sala da exposição, um presente para os visitantes. Todos têm o direito de ficar nos balanços, como se estivessem à sombra de uma árvore, ouvindo a cantora e compositora mestiça Fernanda Takai, vocalista da banda Pato Fu, entoando em japonês e em português, com sua voz doce e afinada, a música Nagoya, composta por ela e o brasileiro João Donato. “Essa multiplicidade encontrada na atual geração de nipo-brasileiros é preciosa, porque, daqui a algumas dezenas de anos, em futuras gerações, provavelmente o panorama será outro”, reflete Michiko Okano. “Captar essas manifestações em pleno vigor, neste momento, é, portanto, uma oportunidade valiosa, que não se pode deixar passar.”
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O haicai da poeta Marilia Kubota
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A exposição “Olhar Incomun: Japão revisitado” fica em cartaz até 11 de setembro, de terça-feira a domingo, das 10h às 18h, no Museu Oscar Niemeyer (rua Marechal Hermes, 999, Centro Cívico, em Curitiba, PR). Entrada: R$ 12,00. Grátis às quartas-feiras. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (41) 3350-4400
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