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“Eu não sou de resistir. Eu sou de reexistir”
José Celso Martinez Corrêa, que morreu no último dia 6 aos 86 anos, continuará sendo uma fênix inquieta e provocadora
José Celso Martinez Corrêa - Foto: Agência Brasil
De várias maneiras, José Celso Martinez Corrêa – ou simplesmente Zé Celso – redefiniu o teatro brasileiro. De várias maneiras, ele foi até mesmo até maior que o próprio teatro brasileiro. Iconoclasta, inovador, provocador, revolucionário: todos esses adjetivos cabem bem em sua trajetória nos palcos, dirigindo, inventando e criando por quase sete décadas.E sempre se ocupando em confrontar o establishment e o status quo. Zé Celso trabalhou de forma frenética desde os anos 1950 e, diferentemente de muitos artistas que preferem, vez ou outra, se permitir um período sabático, ele continuou em frente com seu Teatro Oficina – se não estava encenando, ele estava formando novos atores. Seus “O Rei da Vela” (1967) e “Roda Viva” (1968, reencenada em 2019) são marcos da dramaturgia nacional. Para muitos, há na verdade um período ARV e DRV – antes de O Rei da Vela e Depois de O Rei da Vela. E depois de Zé Celso, o que virá? Morto aos 86 anos no último dia 6 em consequência de um acidente caseiro, quase prosaico que tomou proporções épicas de um incêndio que consumiu 60% de seu corpo, Zé Celso Martinez é mais do que uma fênix – a ave mítica com a qual ele gostava de ser comparado. Ele ressurgirá das cinzas? Não necessariamente, porque, com certeza, ele permanecerá. Ele não sai de cena. Ou, como ele afirmou certa vez, “eu não sou de resistir. Eu sou de reexistir”.
Diante da história que José Celso Martinez Corrêa construiu, que lições ele deixa? O que fica de legado deste paulista de Araraquara que em meados da década de 1950 chegou a São Paulo para estudar Direito na USP mas acabou deixando o curso, preferindo a boca do palco às Arcadas?
“José Celso Martinez Corrêa é o maior artista do teatro brasileiro de todos os tempos. Ele teria como rivais João Caetano no século 19, Arthur Azevedo, já no começo do século 20, o grande Procópio Ferreira e Leopoldo Fróes nos anos 1920 e 1930 e as divas dos anos 1950, principalmente Cacilda Becker, que é uma espécie de mãe espiritual dele. Mas comparado a todos esses gigantes do teatro brasileiro, ele foi o que constituiu a mais genuína forma cênica de teatralidade brasileira, comparável às maiores realizações dos grandes encenadores dos séculos 20 e 21. Então, por tudo isso, ele é o nosso maior artista no teatro e um dos maiores de sua época”, garante Luiz Fernando Ramos, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e diretor do Teatro da USP, o Tusp.
“Quanto às lições que ele deixa, ele deixa principalmente um legado insuperável que é o próprio Teatro Oficina, com 65 anos de atividade, uma organização em torno de um espaço que a cidade com certeza a cidade acabará assimilando. Ele deixa para a eternidade essa contribuição, na medida que várias gerações que passaram por lá são seus legítimos seguidores e continuadores de sua obra”, afirma Ramos.
Mas, afinal, o que torna Zé Celso único? Para Abílio Tavares, também professor da ECA e ex-diretor do Tusp, ele era “um artista especialíssimo, um grande homem do teatro do mundo”. “Mais longevo dos grandes encenadores que revolucionaram nosso teatro a partir da segunda metade do século 20, e em plena atividade criativa aos 86 anos, nosso Zé Celso deu sua contribuição incomensurável não apenas para o teatro, mas para a cultura do Brasil”, afirma Tavares. “Singular e plural, coletivo e único, o legado de Zé Celso sobrevive e se renova nessa imensa tribo de ‘gente de cena’ que, durante quase sete décadas, bebeu e continuará bebendo o néctar de sua imensa e generosíssima genialidade artística, acredita ele, que também é ator, reconhecendo o tom “superlativo” de sua fala, mas garantindo que “não tem como ser diferente quando se trata de Zé Celso”,
Já Luiz Fernando Ramos vai em uma mesma direção, mas de uma forma mais direta. “Ele é único justamente pelo fato de, entre todos os artistas brasileiros de teatro, como seus companheiros de geração Augusto Boal e Antunes Filho – que deram contribuições muito importantes para as artes cênicas brasileiras –, ele é o que mais genuinamente criou uma linguagem própria, uma poética cênica própria. Uma poesia cênica de exportação que foi sonhada por Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Alcântara Machado e que ele desde os anos 1960 vinha constituindo incessantemente. Ele nunca parou de arriscar, de avançar”.
“Rito de transmutação”
A primeira vez que vi Zé Celso em cena foi em 1991, com ‘As boas’, versão totalmente contemporânea e brasileira de ‘As criadas’, de Jean Genet. Foi como um soco no estômago”, relembra a diretora de teatro e professora de Artes Cênicas da ECA Cibele Forjaz. “Zé explode a fronteira entre palco e plateia, entre arte e vida, teatro e realidade. Toda ação cênica é uma ação de transformação. Para Zé Celso, o teatro é ritual e política. É revolução permanente”, afirma ela que, de tão impactada pelo que assistiu, largou “uma carreira promissora” como jovem diretora e entrou “de corpo e alma” no Teatro Oficina e lá ficou por cerca de uma década
“Passei dez anos ao lado de Zé. E de tantos outros atores. E cada vez mais artistas criadores, poetas, músicos, centenas de pessoas que em 65 anos fizeram do Teatro Oficina o lugar de iniciação na arte transgressora da presença ao vivo”, recorda ela, afirmando que no Oficina “fez de um tudo, como todos e todas” para cada novo espetáculo, para cada passo da luta pela reinauguração do Oficina, ainda em obras, com ‘Ham-let’. “Assistir uma tragicomédiaorgia no Teatro Oficina levou gerações e gerações de jovens a ver além da cena conformista da burguesia, a acreditar no poder transformador da arte, a ter coragem para lutar, cada qual com suas armas e instrumentos por uma ‘outra forma de relação com a vida’, outra forma de relação com as pessoas, com a cidade, com os rios, florestas”, afirma.
Pega de surpresa coma morte de Zé Celso em meio a uma viagem a Belém do Pará, Cibele voltou a tempo de participar do velório do amigo e mentor. “Zé sempre foi e será sempre ‘Comida e bebida’ – música de Eurípedes com letra de José Miguel Wisnik que Zé Celso cantava como ‘Tiresias’ em ‘As bacantes’ – para o teatro brasileiro, para o teatro do mundo”, contou Cibele à repórter Rebeca Fonseca do Jornal da USP, pouco antes de ir para o emocionante velório de Zé Celso que reuniu milhares de pessoas no Teatro Oficina – ou, como ela preferiu chamar, antes de ir para o “rito de transmutação” de Zé Celso. Uma transmutação digna de uma fênix. Digna de alguém que certa vez afirmou, com toda a certeza que apenas José Celso Martinez Corrêa poderia ter, que “tudo é tempo e contra-tempo! E o tempo é eterno. Eu sou uma forma vitoriosa do tempo”.
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