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Em exposição na USP, bonecas decapitadas tematizam o que é ser mulher
Mostra da artista Esther Faingold está em cartaz na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM)
“Se emancipar, ter voz, ter sexo, ter qualquer coisa animal”, escreve a poeta Esther Faingold ao estrear nas artes plásticas com a exposição Qualquer Coisa Animal, em cartaz até 22 de novembro na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, na Cidade Universitária, em São Paulo. Para tematizar as transformações e permanências da existência como mulher, a artista reúne daguerreótipos, poemas, vídeos e, em especial, sua coleção de bonecas vitorianas (1837-1901) refiguradas.
Autora do livro Ethers (Cosac&Naify, 2011), Faingold apresenta agora as próprias experimentações plásticas ao grande público pela primeira vez. Há 20 anos, ela transita o circuito artístico, tendo atuado em design industrial e colaborado com nomes como Marcelo Cidade e Tunga. Sua coleção de bonecas, por exemplo, cresce há mais de uma década. “Sempre, tudo o que eu fiz, mesmo quando estava trabalhando numa indústria, era um exercício de poesia”, destaca Faingold em conversa com o Jornal da USP.
![Mulher com lenço na cabeça.](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2024/09/20240924_esther-faingold-300x300.jpg)
Na exposição, a arte de Faingold aparece como uma ferramenta complementar à escrita, de forma que o manejo da literatura marca cada uma das novas produções. “Eu vejo as bonecas, as composições e os corpos quase como textos. Para mim, todas elas têm uma narrativa”, diz. E é esse fio narrativo contínuo que se esconde entre as obras, encadeando as ideias da autora.
“Na literatura dela, sempre há um aspecto muito visualizante e muito plástico, assim como nesta exposição de artes plásticas há a presença muito forte da palavra”, afirma o curador da exposição, professor Luiz Armando Bagolin, docente do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. “Tanto na literatura quanto nas artes plásticas praticadas pela Esther, ela tem a mesma preocupação com a questão da mulher e da liberdade: se livrar desse corpo que foi domesticado pela sociedade.”
As bonecas-bibelôs, agora decapitadas em móbiles gigantes, surgem na poética de Esther Faingold antes como amuletos garimpados em mercados de pulgas. De hábito, a coleção não demorou a se tornar uma obsessão da artista. O processo de desembalar, despir, restaurar, afogar e dissecar as china dolls era como um ritual de mumificação. Muito além de embalsamar aqueles corpos de tecido vitoriano, a libertação das bonecas de cristaleiras passou a evocar as meninas humanas com quem, um dia, brincaram.
A fixação com as porcelanas logo se fundiu com outra paixão antiga: os minérios. Familiar com a joalheria graças ao ofício de seu pai, Faingold busca transformar o que toca em amuleto. Dos corpos despidos, surgem pedras vulcânicas, amazonita, coral e quartzo bruto. “Seios e vulvas começaram a brotar, barrigas com gestações de minerais, de bichos”, escreve a artista sobre as “cirurgias” costuradas ao longo de 12 anos por diferentes países. A brutalidade das pedras nos ventres delicados revela o aspecto feminino das duas matérias. “A pedra nasce no ventre da terra, e a mulher é vista historicamente como uma espécie de ventre de onde nós nascemos. Mulher e terra, simbolicamente associadas na mitologia na figura da forma mater: primeira forma da matéria, de onde todos os outros seres provêm.”
O professor Bagolin completa: “Esther utiliza pedras no sentido de trazer o conceito de origem, o conceito de natureza primordial. As pedras têm simbologias específicas, cada mineral é associado a uma cor, a uma origem, a um sonho. Esther utiliza esse material como se fosse um pintor utilizando as tintas”.
Resfriadas em vitrines farmacológicas, as cabeças decapitadas ganham palanque próprio em Qualquer Coisa Animal. Elas compõem a obra Ruminations, em que tomografias espelham os rostos de porcelana, em um retrato das mulheres na psiquiatria. Nessa ala, o visitante da exposição recebe em mãos o poema Rumination (Ruminação), assinado por Esther Faingold ainda em 2018. Com ares da escritora norte-americana Sylvia Plath, conhecida pela abordagem da depressão na literatura, o poema vem da “bolha química” em que Esther Faingold sobreviveu por anos, em luta contra uma depressão refratária. “Ela é teimosa, insubmissa, obstinada, desobediente. Ela é um animal do sexo feminino”, lê-se em uma estrofe.
O poema faz parte de um volume em produção, ainda a ser publicado no Brasil. O texto captura o momento determinante do tratamento psíquico de Faingold em que o eletrochoque lhe é receitado. Marca da psiquiatria do fim do século 19, uma das sequelas do procedimento é a possível perda da memória. O poema acaba com esta sequência: “Antes que os meus lobos/ frontais sejam desligados/ e correntes elétricas/ tomem conta do meu cérebro,/ preciso me ater ao que quero lembrar, ao que desejo/ que você saiba de mim. Antes/ que eu me esqueça do meu/ próprio nome”.
Confrontada com a escolha de acatar ou não uma intervenção tão invasiva e arriscada, Esther relembra: “Tudo que eu faço dali para frente é tentar escrever e registrar o que que eu quero lembrar caso essa memória seja dissipada. O trabalho passa por essa questão de pensar a memória”. Frente a essa crise íntima, a artista viu na memória coletiva um escape ao próprio esquecimento. Foi essa “epifania” que impulsionou uma investigação sobre as donas das bonecas, feita a partir de cartas e daguerreótipos enviados por suas netas. A aproximação com essas mulheres é registrada, na exposição, com os vídeos Autoperipatetikos e Kaddish.
Em Escrito sobre Um Corpo, texto curatorial do pesquisador Victor Gorgulho, a exposição é definida nestes termos: “Trata-se de quase um autorretrato involuntário, às avessas: uma representação da própria artista, um sintético eco visual de toda e cada mulher”.
*Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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