Por Janice Theodoro da Silva
A cena, divulgada em vídeo, de um morador de rua sendo amarrado, arrastado por um carro e morto, é de tirar o folego. A violência repetida e visualizada cotidianamente favorece a cegueira.
Olho para o celular ou a televisão e fico apreensiva: falta reflexão sobre a onda conservadora e sobre as manifestações de barbárie apresentadas com frequência na mídia. O que está acontecendo? Quais são as origens da escalada da agressividade? A violência já existia? Estava oculta? Ocorreu uma autorização no interior das pessoas, a partir de estímulos exteriores, para o exercício da violência?
Os comentaristas da imprensa e da televisão e de outros meios de comunicação criticam, repetidas vezes, assassinatos e destruição do meio ambiente, documentam os fatos brutais, mas a sensação é de uma fala proferida ao vento.
Já que em terra de cego quem tem um olho é rei, arrisco uma reflexão.
Os usos da linguagem expressam formas de pensamento e agregam as pessoas em tribos. Atribuirei o nome de grupo A àqueles indivíduos cuja linguagem se caracteriza pelo emprego de metáforas, muitas delas vocacionadas para o riso, escárnio e, no caso do Brasil, para questões de gênero e violência. O boi bombeiro é uma metáfora da área rural, masculina, sugestiva enquanto figura de linguagem, independentemente de seu significado ser verdadeiro ou falso. O fogo na mata, na caatinga, no cerrado, no pasto segue queimando com pouca ajuda de imaginários bombeiros bois ou bombeiras vacas. Trata-se de fogo ateado por gente com finalidades fruto de interesses individuais. Provavelmente ampliação de pastagens ou áreas agriculturáveis. É fácil ver, para quem quer ver, o fogo, a destruição e os interesses.
Na sequência um fato igualmente sugestivo, embora não seja uma figura de linguagem, mas a descrição de um fato naturalizado como hábito, carregado de uma estranha brasilidade: guardar dinheiro na cueca. A minha surpresa não é com o dono da cueca, livre para guardar o seu dinheiro onde quiser e, sim, com os brasileiros votantes, indiferentes ao fato de alguns políticos preferirem guardar dinheiro em casa, e especialmente na cueca, livrando-se da justificação da origem do vil metal e da necessária tributação do dinheiro. Cego é quem não quer ver.
No que diz respeito à linguagem, é praxe do grupo caracterizado como A repetir uma afirmação antidemocrática e de uso corrente, valorizando as desigualdades e um modelo político hierárquico: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Frase de raízes coloniais.
Diante de um mundo indiferente aos velhos valores democráticos, complacente com a violência e mais atento às necessidades do mercado do que à vida, a pauta do grupo denominado B é compreender os motivos de setores significativos das sociedades (brasileira e norte-americana, entre outros) apoiarem comportamentos autoritários, hierárquicos e agressivos, marcados pela desqualificação de sentimentos como a compaixão, a generosidade e a justiça, aptos a amesquinhar a memória da barbárie, especialmente da Segunda Grande Guerra.
Apesar dos esforços de amplos setores da mídia apresentando fatos e argumentos lógicos, não ocorre mudança significativa na percepção daqueles que defendem um conservadorismo ancorado na defesa da desigualdade e com aceitação da violência. É inútil reunir cientistas para demonstrar o outro lado da moeda. Pessoas enfeitiçadas não mudam de opinião. Para elas a terra é redonda, o boi é bombeiro e a cueca, um bom lugar para guardar dinheiro. Nada (ou quase nada) surpreende um enfeitiçado.
O desafio é: como quebrar o feitiço?
Primeiro passo: descrever o fenômeno em detalhes
A pessoa enfeitiçada defende o pensamento mágico. Para ela, o mundo pode mudar rapidamente mediante a interferência de um personagem com presença masculina, viril e enérgica e com uma linguagem direta e grosseira vocacionada para os extremos. O seu mundo é fixo, ela se sente segura diante do imutável, considera seguro o viver segundo normas rígidas, se deleita com a repetição de papeis e comportamentos tradicionais. A verdade é única, seu mundo é unívoco e indivisível. O pacote envolve negação da prudência, confundida com fraqueza, do equilíbrio, considerado oscilação da vontade e da crítica, tratada como desrespeito da verdade única. É inútil discutir com aqueles cuja opção tem como raiz um pensamento unívoco. Eles são o núcleo duro do grupo A.
Já as pessoas do grupo B acreditam na diferença. Seu universo é flexível, as verdades são mutáveis de acordo com as circunstâncias, o que por vezes é problemático. Levantar hipótese é exercício constante e, dependendo da situação, o certo pode ficar errado e o errado, certo. Argumentos e provas alteram vereditos, até mesmo de crimes cometidos. A flexibilidade das leis e normas às vezes é exagerada. As pessoas do grupo B, em geral, passam horas discutindo questões simples e complexas, consideram trocar ideias um exercício necessário tanto para escolher um restaurante como para colocar em questão usos e costumes. Preferem ser prudentes, observam os efeitos causados por um remédio antes de recomendá-lo, acompanham o desenvolvimento das ciências, acreditam nos seus métodos, no número imenso de variáveis responsáveis pela manutenção da vida no planeta, consideram os equilíbrios ambientais e respeitam, na justa medida, o próximo, sua vida, seus hábitos e suas escolhas. São seres de alma inconstante, exigindo tempo e paciência no convívio.
Por enquanto nenhuma novidade tanto no grupo A como no B.
É possível o diálogo entre o grupo A e o B?
Quem propõe a pauta, na atualidade, é o grupo A.
O grupo A fala por aproximações, deslocamento de imagens (metáforas), formas padronizadas de linguagem, símbolos de unidade (nação), apagamentos de evidências e diluição de responsabilidade por dissipação dos sujeitos responsáveis por um determinado ato ou conduta.
O grupo B tenta responder provando (pensamento científico), argumentando, usando da lógica e de procedimentos retóricos.
Esforço inútil. Estamos diante de duas vertentes de pensamento. O que surpreende é a pauta ser elaborada constantemente pelo grupo A e o grupo B ficar apenas respondendo sem propor uma pauta própria. É inútil o grupo B querer argumentar porque o grupo A não constrói seus argumentos no campo da lógica e da retórica. Trata-se de um pensamento mágico, estruturado a partir de outro procedimento cognitivo.
Segundo passo: propor um remédio
No pós-guerra, coube aos artistas fazer o público pensar por meio da arte. A barbárie das guerras e a impotência do homem colocou em questão a maneira como o mundo era visto, a arte e seu papel embelezador dos museus e casas da elite. A guerra despertou uma sensação de profunda impotência diante da brutalidade e selvageria dos homens. Tanto o dadaísmo como o surrealismo e o expressionismo procuraram interferir na realidade, estimularam o pensamento questionando o lugar onde as coisas tradicionalmente eram postas, mudaram a função e o status dos objetos, quebrando a lógica daquele verso todo dia ela/ele faz tudo sempre igual.
O mictório de Marcel Duchamps (1917), as pinturas inventivas e alucinadas de Salvador Dalí, relógios derretendo, cobertos por formigas, o sono e o sonho, tudo recoberto pelo tempo, ou ainda o beijo de René Magritte, sem gosto e sem rosto, de um homem e uma mulher, ambos cobertos, são imagens capazes de agitar as mentes. As artes plásticas, a literatura com autores dispostos a colocar em cheque os limites da razão, o cinema fragmentando o tempo e o teatro dissolvendo os limites entre o palco e a plateia, rompendo a linearidade do texto dramatúrgico, remexeram e remexem com as mentes e os corações, deslocaram e deslocam o olhar, a forma de ver, fazendo ver mais.
A história não se repete, mas a natureza humana desde os seus primórdios simboliza, faz arte.
Vamos juntos (você, leitor, e Eduardo Srur) ao supermercado. Observe as prateleiras repletas de refrigerantes. A repetição de um mesmo objeto carrega beleza especialmente nas culturas voltadas para classificação e organização dos objetos, como a nossa. Observe algumas decorações à moda de prateleiras de supermercado. Os arquitetos usam muito essa estratégia de repetir um mesmo objeto numa estante. O efeito surpreende. Tem charme para nós, da civilização dos classificadores. Por que a repetição agrada? Trata-se de uma mesma imagem com outra função diferente daquela original. A repetição instaura um novo sentido para os mesmos objetos. Imagine um vaso. Ele sugere uma flor. Agora visualize uma sequência de vasos na estante. Eles não sugerem uma flor. O conjunto compõe outro significado, a ausência, a falta da flor pode ressignificar o conjunto.
Vamos para o supermercado com Eduardo Srur. Sem pensar pegamos um carrinho. Sugestiva imagem construída a partir da trama metálica do carrinho de supermercado. A imagem inicial do vídeo focaliza a tela de ferro do carrinho, um espaço seguro para colocar as compras. Em seguida as prateleiras, onde o olhar dos consumidores evita os passantes e se concentra nos produtos. A beleza das prateleiras marcadas pela repetição dos produtos torna a cena cativante. Diante dela Srur pega uma garrafa de refrigerante com silhueta avolumada e, em vez de colocá-la no carrinho, abre-a e derrama o líquido sobre a cabeça e a boca, fazendo uma intervenção melada e adocicada num espaço ícone da nossa sociedade. A cena se repete. Mais meleca. Na sequência ele derrama um líquido de coloração vermelha sobre a cabeça. Suco de uva? Depois um outro líquido de coloração amarela, talvez guaraná, mais porcaria. Um banho de refrigerante amarronzado, suco de uva e guaraná refresca menos e lambuza mais do que a água.
Vamos pensar na sede em um dia de calor. Água ou refrigerante? Por que abrimos mão da água? Refrigerantes e sucos industrializados, derramados a partir da cabeça, escorrendo pelo corpo, fazem ver o que se toma. O foco da câmera no chão nos remete ao caminho natural dos líquidos despejados no corpo pelo lado de fora da boca. Fernando Huck, diretor de filmagem, escolheu o foco para produzir impacto.
Sensação: saudades da água, transparente, limpa, fresca. Srur precisa de um banho.
O “interventor” continua seu passeio desmontando os signos para que se possa compreender melhor o mundo em que vivemos. Ele, ao derramar sobre si mesmo líquidos de cores e consistências variadas, nos obriga a fazer novas conexões, diferentes daquelas experimentadas no dia a dia em um supermercado. A cena explicita a nossa entrega inconsciente às sugestões das prateleiras, obedecendo mais a elas do que à nossa própria vontade. A sequência de líquidos e pastas derramados sobre a cabeça de Eduardo Srur é bem variada, sugestiva pela cor e consistência. Farináceos me encantam. Eles se expandem no ar e, ao mesmo tempo, se transformam numa máscara, tendendo para o sólido. A cena final é festa, alegria, prazer e deleite. Granulado de chocolate e estrelinhas coloridas rompem barreiras, transformam a gosma e seu protagonista em objeto doce, açucarado, elixir para ser consumido, deglutido, comido.
A emoção exposta no vídeo é fruto da mistura, de consistência pastosa, cobrindo o rosto e o corpo do artista. Os sentimentos afloram, despertando no expectador novas conexões, raciocínios abstratos, material para sínteses variadas, provocando um olhar crítico do mundo em que se vive.
O supermercado, diferente do antigo mercado repleto de animais vivos, separa as coisas. Na prateleira dos galináceos não vemos nem o frango nem a galinha, menos ainda a vaca ou o boi. As embalagens apenas indicam o preço por meio de um código de barras. Expor uma foto simpática da vaca ou da galinha não estimularia a compra. Embora os animais estejam mortos e em pedaços na nossa frente, a forma assumida, na bandeja de isopor coberta de plástico, nos faz comprar e comer o frango ou a carne com mais distância do animal e menos culpa.
Imaginar uma árvore, o seu fruto, o cacau e depois o chocolate não é um caminho simples. Afinal, aquela etiqueta dizendo a porcentagem de cacau em geral se materializa no preço (mais cacau, mais caro), ficando o fruto, o sabor amargo do cacau, fora do eixo central da nossa cognição.
O trajeto se repete, o ketchup não lembra o tomate, sua venda está garantida por meio do açúcar introduzido no concentrado de “tomates” aromatizados. Pobre tomate, dominado pela cana-de-açúcar. A aromatização é outro mistério. Os sabores, criados em laboratório, seduzem o consumidor sem que ele possa identificar as suas origens. O resultado final é semelhante: a distância entre o sabor do tomate e o sabor do ketchup.
O vídeo dirigido por Fernando Huck e o trabalho de Eduardo Srur aproximam a palavra da coisa utilizando visualidade de impacto.
Como e por que compreender e combater a cegueira, a surdez e a ausência de comunicação presentes em processos cognitivos e linguagens distintas dos grupos A e B? Que linguagem deve ser utilizada na comunicação?
O pensamento mágico e seus heróis, igualmente mágicos, expressão do grupo A, constroem uma comunicação com base em analogias do tipo namoro ou casamento para expressar a escolha de um ministro, metáforas e aproximações que humanizam coisas e desumanizam pessoas – CNPJ na UTI (CNPJ não é gente) -, e fragmentos descontextualizados compondo um repertório repleto de signos incisivos, agressivos, por meio de expressões de uso na guerra, como “inimigo invisível”, “guerra contra o vírus”, “bandido bom é bandido morto”, ou ainda imagens de força como o uso da mão como revolver.
Terceiro passo: localizar o cerne do problema
Levi Strauss, no livro O Pensamento Selvagem, analisa diferentes tipos de pensamento observando sociedades primitivas. Ele mostra como o pensamento selvagem não é um ensaio inicial do pensamento científico. Portanto, não adianta esperar ou estimular o grupo A com a expectativa de uma evolução para o pensamento do grupo B. Trata-se de diferentes processos cognitivos. As raízes não são as mesmas, suas premissas envolvem categorias distintas de análise. Para o diálogo se realizar é necessário adequar os diversos instrumentos da linguagem aos grupos com quem se pretende conversar.
Conclusão temporária
Para responder a afirmações sem comprovação, apoiadas em uma linguagem estruturada no impacto e com foco no mundo sensível, a arte pode ser um meio. A arte não cria trilhas, não estabelece direção, não avança em sequência. A arte produz impactos e faz ver melhor.
Os eventos de CowParade*, por exemplo, representam uma sugestão. Eduardo Srur acertou no coração das metáforas viris, do grupo A, com a exposição amorosa de seu toro bandido acompanhado de sua adorável vaca, expostos nas Avenidas Paulista e Faria Lima, em São Paulo.
Eduardo Srur, em razão da sua intervenção na cidade, respondeu a um inquérito e teve seus animais coloridos confiscados.
Qual o crime?
Um suposto ato de amor em espaço público, uma inseminação artística, como comentou Srur. Preso o artista, ele conseguiu escapar da condenação em razão da ausência de falo no seu toro bandido (motivo declarado, por ele, em entrevista na televisão com Jô Soares).
Observem, ele foi dispensado da delegacia ao justificar a ausência do falo em seu toro. Conseguiu atenuar a crítica da delegada relativizando a virilidade do seu animal, nunca domado.
A tal virilidade estava em outro lugar.
A virilidade estava na capacidade do artista de fazer ver melhor.
Janice Theodoro da Silva é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
*CowParade: eventos de exposição de vacas. “Ela (a vaca) representa coisas diferentes para pessoas diferentes ao redor do mundo: é sagrada, é histórica, mas o sentimento comum é de carinho. Ela simplesmente faz todos sorrirem.”