Essa frase de Rubens Borba de Moraes, escrita no prefácio de O Bibliófilo Aprendiz, retrata bem sua infinita paixão pelos livros. O volume sai agora em reedição de luxo pelas Publicações BBM, em homenagem aos 120 anos de nascimento do bibliófilo, bibliotecário, bibliógrafo, historiador e pesquisador brasileiro, nascido no dia 23 de janeiro de 1899. O selo já publicou outros dois títulos – Rubens Borba de Moraes: Anotações de um Bibliófilo e Cartas de Rubens Borba de Moraes ao Livreiro Português António Tavares de Carvalho (leia mais abaixo) – escritos a partir de pesquisas realizadas no arquivo de Moraes, deixado sob a guarda de seu grande amigo, o também bibliófilo José Mindlin, e que – fato que muitos desconhecem – está no acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP.
Livro de cabeceira do professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Plinio Martins Filho, O Bibliófilo Aprendiz é um dos melhores títulos sobre a relação de livros sobre livros, como afirma. “O seu jeito de escrever é muito fácil, espirituoso.” Segundo o professor, que por mais de 26 anos dirigiu a Editora da USP (Edusp) e atualmente está à frente do setor de publicações da BBM, essa edição é uma homenagem à figura importante dos bibliófilos, “uma espécie de guardiões do livro”. Para ele, Moraes viveu intensamente a vida com os livros e, assim como José Mindlin, foi muito generoso em não revender as edições para bibliotecas internacionais, deixando seu legado na BBM, com acesso irrestrito a pesquisadores.
Organizador das correspondências entre Moraes e o livreiro português António Tavares de Carvalho, Martins Filho conta que encontrou em uma das cartas o desejo expresso do bibliófilo por uma edição de luxo de O Bibliófilo Aprendiz. “Não uma edição luxuosa, mas de luxo, com aparato crítico, papel nobre, índices e ilustrações, e foi o que tentamos fazer”, explica. A edição sai em capa dura e de tecido, com várias ilustrações dos livros raros e raríssimos, como o próprio Moraes definia. “Espero que tenhamos dado a devida importância e que a edição esteja à altura da personalidade do seu autor”, afirma.
Nascido em Araraquara, o bibliófilo foi muito jovem estudar na Europa, formando-se na Faculté des Lettres de l’Université de Genève e retornando ao Brasil somente em 1919. Ao lado de Mário de Andrade (seu amigo de infância), Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e Guilherme de Almeida, foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. Pioneiro da biblioteconomia no País, fundou a Escola Livre de Sociologia e Política (FESPSP). Além disso, assumiu a direção de Divisão de Bibliotecas do Departamento de Cultura, reorganizando a Biblioteca Municipal de São Paulo e, depois, a Biblioteca Nacional.
Sua atuação foi reconhecida internacionalmente e foi convidado a dirigir a biblioteca e o serviço de informações da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York e Paris, cargo que ocupou por mais de dez anos, até sua aposentadoria. Retornando ao Brasil, lecionou na Universidade de Brasília (UnB) e dali mudou-se para Bragança Paulista, falecendo em 2 de setembro de 1986, aos 87 anos, deixando seu rico acervo de obras raras, que colecionou ao longo da vida, ao amigo Mindlin.
Amor aos livros
“Tivemos grande amizade pessoal, encontros frequentes e conversas infindáveis, mas (…) o que nos ligou fortemente foi o amor aos livros, ambos com a mesma compulsão patológica da garimpagem. Um curtia a biblioteca do outro, e ele é, na realidade, o interlocutor que me falta. Preocupado com o que fazer com os livros depois que passássemos desta vida para melhor (pergunto-me se será mesmo a melhor), resolvemos unir as bibliotecas, para evitar a dispersão”, escreveu Mindlin na comemoração do centenário de Moraes. E a sua biblioteca ficou na casa dos Mindlins, “intacta, arrumada, como estava na casa dele, e não se misturando com a nossa, pois uma biblioteca transmite a personalidade de quem a formou”. E agora, da mesma forma, na BBM.
Mindlin ainda ressalta que Moraes foi um homem de grande cultura, conhecedor e infatigável leitor dos mais diversos assuntos e profundo estudioso de temas brasileiros – daí a palavra Biblioteca Brasiliana, sua especialidade. “Apaixonado por livros, passou a lhes dedicar sua vida, não só como leitor, mas também como escritor e organizador da leitura” diz. E acrescenta que tinha pena de ainda ser criança na época das famosas reuniões noturnas em São Paulo, em que Moraes frequentava, ao lado de todo o grupo modernista, a casa de Olivia Guedes Penteado, “quando o ouvia contar o que eram os encontros dos jovens intelectuais”.
Moraes dedicou-se especialmente a colecionar autores brasileiros do período colonial, como cita Cristina Antunes (pesquisadora e curadora da BBM) em seu livro Anotações de um Bibliófilo, informando que, de sua Bibliografia Brasileira do Período Colonial, possuía grande parte das obras que ali estavam. Segundo Cristina, sua biblioteca presente na BBM é composta de 1.752 títulos. O autor ainda publicou “verdadeiros monumentos de erudição”, como aponta Mindlin. Entre eles, Bibliografia Brasiliana, sobre livros raros no Brasil de 1504 a 1900, e Bibliografia da Imprensa Régia do Rio de Janeiro (1808-1822), que foi produzido ao lado da historiadora Ana Maria Camargo, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e publicado postumamente.
Já em O Bibliófilo Aprendiz, Moraes discorre sobre a arte de colecionar. O próprio autor diz, no prefácio, que escreveu o livro “para passar o tempo, para prosear sobre um assunto por que me apaixonei”. E ainda conta: “Desde menino coleciono livros, passei toda a minha vida no meio deles e grande parte de meus melhores anos dirigindo bibliotecas na minha terra e no estrangeiro. (…) cuido dos meus livros e nada mais”.
Publicações BBM
Além de O Bibliófilo Aprendiz, o selo também lançou outros dois livros escritos a partir de pesquisas realizadas no acervo do bibliófilo. O primeiro deles, Rubens Borba de Moraes: Anotações de um Bibliófilo, da pesquisadora Cristina Antunes, foi publicado em 2017 e reúne o conjunto das notas manuscritas por ele nos livros que constituem sua biblioteca. A obra é fruto do levantamento, registro e transcrição das anotações feitas nos próprios livros, notas manuscritas em papéis avulsos, recortes de jornais, recortes de catálogos e notas de venda emitidas por livreiros.
Publicado em 2018, o segundo título, Cartas de Rubens Borba de Moraes ao Livreiro Português António Tavares de Carvalho, organizado por Martins Filho, traz um conjunto de cartas trocadas com o livreiro português, onde se acompanha parte significativa da formação da Biblioteca Brasiliana de Moraes. Nas cartas, o bibliófilo relata a importância de cada obra desejada, adquirida ou não, traçando um amplo painel dos interesses que nortearam o colecionador. A leitura da correspondência vai ainda além da bibliofilia, mostrando a relação de Moraes com outras pessoas e colecionadores e sua visão do Brasil.
Segundo Martins Filho, além de homenagear Moraes, os livros preservam seu legado e são uma forma de levar ao conhecimento do grande público a sua Biblioteca Brasiliana, já que a BBM é uma biblioteca de pesquisa, e não de consulta. “É importante que as pessoas possam conhecer esse trabalho e o acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.”
O Bibliófilo Aprendiz, de Rubens Borba de Moraes (294 págs., 80,00); Rubens Borba de Moraes: Anotações de um Bibliófilo, de Cristina Antunes (136 págs., R$ 78,00); e Cartas de Rubens Borba de Moraes ao Livreiro Português António Tavares de Carvalho, organização de Plinio Martins Filho (544 págs., R$ 79,00); todos editados pelas Publicações BBM. Mais informações no site.