“Carlos Lyra se identificava profundamente com a ideia de levar a cultura da classe média de esquerda ao povo e, ao mesmo tempo, absorver e propagar a cultura da classe trabalhadora em suas manifestações, e por isso foi escolhido para dirigir o setor de música popular do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE).”
A explicação é de Maria Silvia Betti, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Para ela, a participação de Carlos Lyra no CPC é um dos eixos mais significativos da trajetória do cantor e compositor carioca, que morreu no dia 16 passado, aos 90 anos. Maria Silvia lembra ainda que a iniciativa de estabelecer uma via de contato mútuo entre artistas, intelectuais e estudantes com as classes populares fez do CPC uma experiência marcante na história artístico-política do Brasil durante o período em que esteve ativo, do início dos anos 1960 até sua interrupção com o Golpe Militar de 1964. Arte e engajamento andavam de mãos dadas.
Carlos Lyra foi um desses artistas que, desde meados dos anos 1950, absorviam as diversas correntes e influências artísticas, lendo-as a partir de uma lente de esquerda. Como salienta a professora Maria Silvia, Lyra surge para o mundo da música quando o País aprofundava sua industrialização, abrindo-se ao capital estrangeiro, tendo o rádio como veículo de massas da classe trabalhadora e as gravadoras buscando atender tanto às demandas das gerações mais velhas como das mais jovens – estas últimas, antenadas nas diversas baladas românticas de rock e no jazz.
Era o momento nascente da nova estética musical que ressoaria dentro e fora do Brasil. Mas em Carlos Lyra a cultura dos morros e das ditas “favelas” também se encontrava nesse mesmo espaço de inovação. “A bossa nova incorporava cadências jazzísticas, delicadas dissonâncias harmônicas, um imaginário de caráter lírico, e Carlos Lyra foi um artista profundamente identificado com tudo isso. Ele transitou na confluência de tudo isso sem perder o prumo artístico que o orientava. O lirismo bossa nova de Lyra não era, portanto, uma contradição em relação à sua perspectiva de homem de esquerda. Lyra politizou esse lirismo e foi a partir dessa veia política pulsante que ele se engajou e realizou trabalhos fundamentais dentro do grande projeto de cultura épica dos anos 1960: o projeto do CPC da UNE”, resume Maria Silvia.
No livro Do Teatro Militante à Música Engajada: a Experiência do CPC da UNE (1958-1964), a historiadora Miliandre Garcia afirma: “No início dos anos 1960, a atuação de Carlos Lyra como criador e mediador musical sintetizou alguns dilemas que se apresentaram ao artista de classe média engajado nas causas nacionalistas: como compor música ‘intimista’ sem ser chamado de alienado; como participar da fundação e organização do CPC sem abdicar da carreira profissional e do ingresso no mercado fonográfico; e como manter a qualidade técnica e estética conquistada pela bossa nova sem ignorar a tradição da música urbana brasileira”.
Janela do Brasil
O músico Roberto Menescal esteve com Lyra poucos dias antes de ele morrer. Amizade de quase 70 anos, desde que se conheceram na escola, em 1955. Foram muitas aulas a menos depois dessa amizade, mas muita inspiração a mais, com as cordas dos violões amarrando o futuro de uma turma que incluiria Nara Leão, Ronaldo Bôscoli, Vinicius de Moraes e tantos outros que instauraram novos rumos à música no Brasil.
Um dos ícones dessa turma, Tom Jobim telefonou um dia para Menescal convidando-o para ir à sua casa: “Vem cá porque eu estou aqui ouvindo um songbook do Carlinhos (Lyra) e estou impressionado como as músicas dele são boas. E eu escrevi na pauta uma das músicas dele, e além de tudo tem um desenho bonito”.
Menescal foi à casa de Tom Jobim e eles tocaram algumas músicas juntos. “Aí o Tom falou uma coisa que eu nunca mais me esqueci: ‘O Carlinhos é o maior melodista do Brasil’”, relembra.
Quando Menescal analisa o papel de Carlos Lyra na história da bossa nova, traz uma imagem interessante: os 15 metros de janela do apartamento de Nara Leão, com vista para o mar de Copacabana. Segundo ele, aquele ambiente delineava as músicas que aquela turma compunha. Mas Carlos Lyra foi ampliando seu alcance de visão. “Ele passou a falar das coisas que a gente não falava. O Carlinhos começou a ir para a esquerda. Cantou o Nordeste, assumiu a ligação com os sambistas do morro, como Zé Keti, Nelson Cavaquinho”. E sintetiza: “A gente era Praia de Copacabana e pronto. Já o Carlinhos abriu a música brasileira, engrandeceu os motivos da nossa música brasileira”.
Ao refletir sobre as diversas atuações de Carlos Lyra, a professora Maria Silvia Betti acrescenta: “Considero fundamental, para todas essas formas de participação, o fato de Lyra ter sido um artista ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que pensava a arte e a cultura a partir de uma perspectiva de esquerda e, por isso, ter se sentido concernido e identificado com o objetivo de colocar em pauta os problemas reais do País, os pontos de estrangulamento econômico e social”. Exemplo disso pode ser escutado na Canção do Subdesenvolvido, composta para o disco O Povo Canta, do CPC, de 1961, e que se tornou uma espécie de hino da UNE.
Ouça no link abaixo a Canção do Subdesenvolvido, de Carlos Lyra e Francisco de Assis, na interpretação do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE).