Fundado em junho de 1985, o Jornal da USP – publicação da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP – circulou na sua versão impressa até maio de 2016, quando se tornou exclusivamente on-line. Nesse percurso, acumulou 1.103 edições em papel e uma história marcada por uma estreita relação com a forte estrutura da Universidade, que exerceu influência sobre o conteúdo e a forma do periódico.
Essa relação é descrita no livro Capas Que Contam Histórias – A Trajetória do Jornal da USP, que a professora Carla de Araujo Risso, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), acaba de publicar. “A Universidade de São Paulo se estrutura em um sistema de castas”, escreve Carla, destacando que a “casta superior” é composta do corpo docente. “Sendo assim, parece óbvio que só os membros do corpo docente possam assumir os cargos mais altos da administração da Universidade: diretores de unidades, coordenadores, pró-reitores e reitor. São eles também a maioria absoluta do Conselho Universitário – órgão máximo da USP.”
Já os servidores não docentes – continua Carla –, embora seu número seja três vezes superior ao número de docentes, são considerados um público menos preparado para gerir a Universidade. “São membros sem grandes direitos participativos na gestão da USP”, avalia ela.
Essa relação de poder na Universidade permeou a linguagem gráfica do órgão oficial da instituição ao longo dos seus 30 anos de existência, constata Carla, que para elaborar sua obra analisou as capas de todas as 1.103 edições do jornal. “O Jornal da USP, evidentemente, não está à margem do sistema de castas estabelecido na USP”, acrescenta a professora, que é mestre, doutora e pós-doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, leciona Comunicação Visual na UFBA e atuou como designer do Jornal da USP durante 14 anos. Capas Que Contam Histórias foi apresentado originalmente como dissertação de mestrado na ECA em 2005.
Em maio de 2016, o Jornal da USP foi fundido com as outras mídias até então mantidas pela SCS – Rádio USP, USPonline e TV USP – para formar o mesmo site de notícias, que preservou o nome consolidado de Jornal da USP (www.jornal.usp.br).
"Público preferencial"
A forte estrutura da USP mencionada por Carla Risso pesou sobre o Jornal da USP desde as origens da publicação, como a professora mostra no livro. Produzida pela então chamada Divisão de Artes Gráficas da Coordenadoria de Atividades Culturais (Codac) da USP, feita em oito páginas de papel sulfite (21×32 centímetros), em preto e branco, sem fotos nem ilustrações, a edição número 1 do jornal, em junho de 1985, já demonstrava a intenção de ser um veículo da Universidade de São Paulo voltado para o corpo docente, “público preferencial” do periódico recém-fundado, como o então reitor Antonio Hélio Guerra Vieira cita no editorial.
“O número 2 dessa publicação de periodicidade originalmente mensal confirmava essa vocação. Outro texto assinado pelo reitor, o qual apresentava a proposta de um novo estatuto, mostra uma clara função do Jornal da USP na ocasião: ser porta-voz da Reitoria”, escreve Carla. “Este foi o produto do primeiro ano de existência desse veículo universitário: dois números editados pelo professor Manoel Carlos Chaparro e uma falta de fôlego para levar o projeto à frente.”
A partir da edição número 3, de abril de 1986, o jornal conta com seu primeiro projeto gráfico e se firma como uma publicação regular, com periodicidade mensal, até a edição 17, de agosto de 1987. Nesse período, dez números foram editados pelo professor Ciro Marcondes Filho, da ECA. “A mudança de linha editorial pressupõe uma mudança da linha visual”, nota Carla. “O Jornal da USP deixou de apresentar um amontoado de informação e diminuiu o número de chamadas. As capas também receberam suas primeiras ilustrações e os espaços brancos começaram a se fazer notar.”
Foi em agosto de 1987 que o jornal deixou de ser mensal e passou a ter periodicidade semanal, agora sob o comando do professor Laurindo Leal Filho, também da ECA. “Diferentemente de outros veículos universitários, o Jornal da USP passou a contar com uma redação fixa para dar conta de um jornal semanal”, escreve Carla. “Um dos legados de Laurindo Leal Filho foi ter profissionalizado o modo de produção do Jornal da USP.”
Mas a passagem de Leal Filho pelo Jornal da USP foi abreviada por um conflito com a Reitoria. Em fevereiro de 1988, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma lista com professores da USP supostamente ditos “improdutivos”. A cobertura do caso feita pelo jornal da Universidade desagradou a administração, que mandou recolher a publicação. Ela voltou atrás logo depois, mas o incidente custou o cargo do então diretor do jornal.
Na sucessão de Leal Filho, a direção do jornal foi assumida pelo jornalista Luis Carlos Torcato, funcionário da USP ligado à Codac. “A partir dessa gestão, o Jornal da USP nunca mais voltou a ser dirigido por professores da ECA, mas sim por jornalistas contratados unicamente para esse propósito”, informa Carla.
“Torcato procurou não criar conflitos com a administração da Universidade. Mantém o modelo de impressão adotado e reduz o tamanho das matérias. As manchetes se situam entre a mensagem oficial e o serviço à comunidade, e ficam longe de assuntos polêmicos”, continua a professora. Dessa época ainda, ela destaca uma curiosidade relacionada com a mudança do formato do jornal: “A Divisão de Artes Gráficas da Codac tinha um grande estoque de papel-jornal com o corte de 64 x 48 centímetros. E assim, não por uma questão de estética ou funcionalidade, o Jornal da USP adotou o padrão francês (Le Monde) – formato que manteve praticamente inalterado até o fim de suas edições impressas”.
A conquista da identidade visual
Com a posse do reitor Roberto Leal Lobo Filho, em janeiro de 1990, Torcato foi convidado a assumir a Assessoria de Imprensa da Reitoria. No seu lugar à frente do Jornal da USP, assumiu a jornalista Maria Lúcia Carneiro, vinda do Jornal da Tarde com a proposta de reformular a publicação gráfica e editorialmente. A capa da edição 143, de 6 a 12 de agosto de 1990 – reproduzida no livro de Carla –, é um exemplo das ideias da nova editora chefe: muito espaço em branco, ilustrações conceituais e manchetes colocadas na parte inferior da página. “Com a entrada de Maria Lúcia Carneiro em 1990, o Jornal da USP tomou como paradigma a linguagem gráfica usada pela imprensa mundial”, observa Carla. “Era, então, estabelecida a identidade do Jornal da USP.” Foi nesse período também que o jornal ganhou cores, passando a ter as capas impressas em quadricomia.
Sob a direção de Maria Lúcia Carneiro, o jornal procurou se aproximar dos estudantes, inclusive com a introdução de tiras em quadrinhos. “Seu discurso visual se parece muito mais com os alunos do que com os docentes.” No entanto, a partir de meados de 1993, a linha editorial se volta mais para questões de interesse geral. Isso porque “a tentativa de aproximação com o público discente não foi bem recebida pelo público docente. E para manter sua autonomia, o foco do Jornal da USP firmou-se sobre questões externas à Universidade, deixando definitivamente para o Jornal do Campus – jornal-laboratório do curso de Jornalismo da ECA – o papel de se comunicar com os alunos”.
A saída de Maria Lúcia deu-se após mais um conflito com a Reitoria, que não se agradou de textos publicados no jornal relacionados à renúncia do reitor Roberto Lobo, em 5 de agosto de 1993, em protesto contra o processo sucessório na Universidade.
O jornalista José Guilherme Ferreira, da redação do Jornal da USP, assumiu a direção do periódico. A primeira edição sob seu comando – a de número 272, de 29 de novembro a 5 de dezembro de 1993, que dá destaque à posse do reitor Flávio Fava de Moraes – traz indícios de que o jornal adquiria um novo perfil, semelhante ao de um house organ. “A foto do reitor recebendo a medalha de Ruy Laurenti também é carregada de simbolismo. O ângulo da captura da imagem faz com que o leitor veja o reitor de baixo para cima, de uma posição inferior. O que faz com que essa capa se assemelhe a uma publicação oficial.”
A breve fase do jornal sob direção de Ferreira se encerrou com um episódio que constitui uma das páginas mais tristes da história do Jornal da USP: em março de 1994, seis pessoas ligadas à Escola Base, no bairro da Aclimação, em São Paulo, foram acusadas pela imprensa de abusar sexualmente dos alunos daquela escola. Era tudo falso e os seis acusados, depois de terem sido expostos publicamente, foram absolvidos. “O Jornal da USP também se envolveu na polêmica. A edição de número 281, de 18 a 24 de abril de 1994, publicou na seção Quadrinhos, página 11, uma tira – assinada por Nigro – que ilustrava o playground de uma escola infantil. Debaixo do letreiro ‘Escola Base’, via-se a ilustração de personagens da Disney – Pateta, Pato Donald, Mickey Mouse – e de Maurício de Sousa Produções – Mônica, Cebolinha, Cascão – mantendo relações sexuais entre si, nas mais variadas posições”, escreve Carla. “O mau gosto da tira diante de uma situação tão delicada quase acarretou alguns processos contra o Jornal da USP por uso indevido dos personagens infantis” e provocou a queda da direção do jornal.
Ilustrações conceituais
Da edição 285, datada de 16 a 22 de maio de 1994, até a última edição impressa, a 1.103, de 25 a 30 de abril de 2016, o Jornal da USP foi comandado pelo jornalista Marcello Rollemberg. A esse longo período, Carla dedica cerca de 60 páginas de sua obra, destacando os aspectos gráficos das capas publicadas, como a da edição 331, de 19 a 29 de outubro de 1995, sobre os cem anos do Tratado da Amizade entre Brasil e Japão, que tem manchete bilíngue (português e japonês), e a da celebrada edição número 1.000, de 3 a 9 de junho de 2013, também reproduzidas no livro.
Carla ainda comenta os temas escolhidos e aponta equívocos gráficos – como a ilegibilidade da capa da edição 445 (de 14 a 20 de setembro de 1998) e o excesso de informações visuais em carregadas capas publicadas em 1997, todas elas mostradas no livro. “Esteticamente, o Jornal da USP voltou a apresentar ilustrações conceituais na capa e diminuiu o número de manchetes. Geralmente, era inserida uma chamada principal e duas ou três secundárias”, analisa Carla, avaliando as iniciativas nessa etapa do jornal.
Em suas considerações finais, Carla retoma a discussão sobre a postura da Universidade e seus reflexos no Jornal da USP. “Para seus profissionais exercerem sua função dignamente, o jornal teve de se aproximar dos cadernos de ciência e cultura da grande imprensa, afastando-se dos temas polêmicos para prestar um serviço à comunidade e privilegiando assuntos como artes, literatura, história, cinema – além, é claro, de empreender a divulgação de pesquisas acadêmicas. Essa linha editorial minimiza as tensões e garante certa autonomia ao veículo”, escreve a professora.
Para ela, o design gráfico do Jornal da USP em sua longeva versão impressa também não procurou causar tensões, pois não mostrou essas tensões. Para a autora, o jornal buscou “expressar visualmente uma estética que a elite uspiana está acostumada a decodificar.”
Capas Que Contam Histórias – A Trajetória do Jornal da USP, de Carla de Araujo Risso, Appris Editora, 190 páginas, R$ 51,00.