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Álbum une poesia de Baudelaire à musicalidade brasileira
Professores da USP combinam orquestra de câmara e instrumentos brasileiros para musicalizar poemas do livro As Flores do Mal, publicado pelo poeta francês em 1861
Foto: Divulgação/Fabulações Baudelairianas
O álbum musical Fabulações Baudelairianas: Récita Camerística de Butiquim, que será lançado nas plataformas digitais neste sábado, dia 31, é um verdadeiro híbrido. Definido por um dos cocriadores da obra, o professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP Paulo Iumatti, como uma “adaptação antropofágica”, o projeto musical – que também conta com a participação do compositor João Marcondes e do professor Álvaro Faleiros, que leciona Poética da Tradução na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – mescla o erudito com o popular, o acústico com o eletrônico e o Brasil contemporâneo com a França moderna do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867).
Composto de oito peças musicais, das quais quatro são cantadas e as outras quatro são instrumentais permeadas por recitações, o projeto é uma “transpiração poética” do livro As Flores do Mal, publicado em 1861 por Baudelaire, conhecido como o fundador da poesia moderna francesa. Segundo Álvaro Faleiros, a ideia da adaptação surgiu a partir do contexto sociopolítico brasileiro do ano de 2018. “Houve uma transformação muito grande da sociedade brasileira, e a releitura de As Flores do Mal surgiu como um espaço de reflexão sobre essas tendências, polarizações, discursos e verdades impostas”, aponta. “O jogo permanente que há dentro da obra de Baudelaire – entre a luz e a sombra, o claro e o escuro, o ideal e a melancolia, a natureza e a modernidade – fez com que eu reconhecesse nele um bom interlocutor para pensar as questões do Brasil contemporâneo.”
A colaboração ambiciosa terá, ao final, três álbuns musicais e inclui a reedição do livro À Flor do Mal, publicado por Faleiros em 2018, em que o professor se propôs a reescrever os 100 primeiros poemas do livro de Baudelaire à luz do Brasil contemporâneo. Faleiros, além de tradutor premiado e curador, também já lançou os álbuns Valsa no Tempo (2023) e Olho do Céu (2018). Paulo Iumatti, o responsável pela musicalização, pesquisa a relação entre o cordel e a música no IEB e é compositor e autor de dois álbuns solo, Heróis da Manhã (2012) e A Girassol (2022). O músico e educador musical João Marcondes já compôs trilhas de balé, documentário, cinema e televisão, e idealizou o grupo Orquestra Camerística de Butiquim, que mistura a formação clássica camerística com instrumentos tradicionais brasileiros.
Como critério de seleção, Faleiros priorizou poemas com ênfase oral, curtos, com estrofes e estrutura que remetam a canções. “A ideia de transformar esses poemas em música se deu naturalmente”, explica o professor. “Eu sempre penso a poesia como um espaço de relação com a canção, e vice-versa.” A partir dos textos escolhidos, Iumatti musicou as obras e Marcondes deu ao projeto a dimensão da Camerística de Butiquim.
A obra de Baudelaire perpassa temas universais e inerentes à condição humana. Em sua adaptação musical, os autores tratam da interpretação satírica de figuras religiosas e refletem sobre a condição humana, o mundo em transformação e a destruição ambiental. “O dia 31 é o aniversário da morte de Baudelaire e o renascimento da sua poesia na forma que nós demos a ela. A nossa expectativa é que o álbum permita um novo olhar sobre essa obra tão rica e tão atual que é a de Charles Baudelaire”, comenta Faleiros.
A poesia musicalizada
Durante um semestre, Faleiros reescreveu poemas de As Flores do Mal à luz da sua subjetividade, usando o poeta francês como interlocutor para explorar as questões políticas, sociais e simbólicas da nova realidade do Brasil contemporâneo. Iumatti então compôs buscando otimizar e potencializar ao máximo o texto poético. “Foi um processo de imersão total no texto poético”, diz Iumatti. “Às vezes saía de forma espontânea e pronta, porque já me evocava determinado universo harmônico ou melodia. Eu lia em silêncio e em voz alta, e isso já me sugeria algumas coisas.”
Após analisar os poemas selecionados, Marcondes pesquisou a música que Baudelaire apreciava e chegou ao maestro e compositor alemão Richard Wagner. “Através dos sons que ele ouvia, transferi para mim a dialética e a forma como penso os trabalhos, na percepção da Camerística de Butiquim”, explica. O resultado final foi a soma entre as inspirações musicais de Baudelaire, a composição e letra de Paulo Iumatti e Álvaro Faleiros e os próprios poemas, incorporando também o politonalismo típico de Wagner na obra.
Paulo Teixeira Iumatti - Foto: Arquivo pessoal
“Tínhamos um projeto que dependia de ser o mais fiel possível ao espírito que cada poema trazia esteticamente, em termos de ambiguidade e de sugestões de imagens”, afirma Paulo Iumatti. “Havia um compromisso com as características daquela poesia, e os arranjos foram pensados nesse sentido.”
Gravação de Fabulações Baudelairianas - Foto: Arquivo pessoal
As Flores do Mal tem uma vasta tradição de musicalização que, hoje, os autores pesquisam. O compositor do Hino da Bandeira, Antônio Francisco Braga, foi o primeiro a musicar um poema de Baudelaire no Brasil, com Recueillement (1903). Ernani Braga musicou La Cloche Fêlée e Tristesses de la Lune, e o principal compositor de Portugal no século 20, Luiz de Freitas Branco, musicalizou cinco poemas do livro. Mas mesmo nos dias de hoje a influência perdura em gêneros mais populares como o pop, o rock e o metal. Antônio Celso Barbieri lançou em 2001 o álbum The Flowers of Evil, e a banda Sad Theory, A Madrigal of Sorrow, em 2004.
O diferencial do atual projeto é que, ao contrário das adaptações feitas a partir de traduções para o inglês, Faleiros, Iumatti e Marcondes são os primeiros a musicalizar a partir de traduções de forma sistemática. “Partimos de uma adaptação de Baudelaire para o contexto brasileiro, de poemas em português e pensando na língua portuguesa, com as referências do nosso País”, comenta Iumatti.
A divisão do projeto musical em um tríptico veio para que a música pudesse ser apreciada aos poucos. “Os dois primeiros discos têm a perspectiva de récita Camerística de Butiquim, e o terceiro trabalho seria uma rapsódia poético-musical, com uma pequena narrativa interna que, ainda que não linear, trabalha as diferentes dimensões alegóricas em torno dos personagens que vão surgindo ao longo das canções, como o Gigante, a Serpente e o Carrasco”, explica o professor Álvaro Faleiros.
“É um projeto em que as obras se conectam. Existe uma unidade em que a criação leva a uma conexão final entre os textos e as melodias”, diz Marcondes. “Isso tudo se tornou algo muito maior do que imaginávamos, a ponto de podermos observar o trabalho visto de diferentes pontos. O projeto é muito mais que um fonograma com arranjos.”
Uma orquestra de câmara abrasileirada
A Orquestra Camerística de Butiquim nasceu com um dos projetos de João Marcondes, reunindo sua paixão por música de orquestra de câmara com música brasileira. Nela, ao lado dos instrumentos clássicos estão instrumentos que ganharam um certo “sotaque brasileiro” devido ao repertório desenvolvido no País, como o cavaquinho, o tambor, o pandeiro e a cuíca. “O projeto pega o cavaquinho e o combina com um violino, uma flauta, tocando de uma maneira mais lírica e mais clássica. Essa combinação é a Camerística de Butiquim”, explica Marcondes.
“Orquestrar para a Camerística de Butiquim é muito rico pela soma dos timbres”, complementa Iumatti. “É fazer blends, juntar coisas, misturar um som com outro, tentando gerar uma terceira frequência e mesclando as características de envelope.” As gravações do instrumental ocorreram em 2022, tocadas por um noneto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Em 2023, com o arranjo pronto, as letras das músicas foram sendo adaptadas e ganhando mais “cantabilidade”. A percussão, violão e cavacos de João Marcondes, as vozes definitivas do canto de Paulo Iumatti e a declamação de poemas de Álvaro Faleiros foram adicionadas em 2024.
João Marcondes durante gravação de Fabulações Baudelairianas - Foto: Arquivo pessoal
Para os autores, o tempo entre a idealização e a conclusão do projeto foi essencial para permitir um maior refinamento poético. “Houve espaço para uma decantação dessa dimensão e a elaboração poética dessa revolta”, aponta Iumatti. “O projeto musical cresceu, mas também pôde ficar perene, sem perder a indignação com o determinado contexto, mas tornando-o mais esteticamente interessante.”
O projeto final foi o resultado do constante diálogo dos autores. É a primeira vez que o trio colabora junto, mas Faleiros e Iumatti são parceiros há mais de uma década, com Faleiros escrevendo letras para várias melodias e Iumatti musicando poemas dele. Já João Marcondes foi professor de violão e produtor musical de Faleiros, e os dois são amigos de longa data. “Essa cocriação e as trocas precisavam ser muito intensas e respeitosas”, opina Marcondes. “Admiro esses meus amigos e estou muito feliz com a contribuição que demos a essa obra.”
Os autores escutam a primeira versão dos arranjos de João Marcondes, em julho de 2022. Da esquerda para a direita: Álvaro Faleiros, João Marcondes e Paulo Iumatti - Foto: Arquivo pessoal
Por tratar também de cegueira, estupidez e brutalização, As Flores do Mal é ideal para abordar os processos de construção do mundo moderno, da ilusão do progresso e do cinismo com firmeza irônica, opina Faleiros. “É assim que imaginamos contribuir para o enriquecimento dessas experiências, sempre ampliando a relação entre poesia e música, e sem nenhum tipo de concessão comercial. Pensamos em contribuir a longo prazo para que a própria ideia de música popular possa ser repensada, na relação de música de câmara atravessada por uma musicalidade extremamente brasileira”, conclui.
Fabulações Baudelairianas: Récita Camerística de Butiquim será lançado digitalmente nas principais plataformas digitais em 31 de agosto pela gravadora Tratore.
*Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado
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