Por Janice Theodoro da Silva
Não é fácil valorizar as qualidades de outras culturas diferentes da nossa.
Lembro bem quando estava em Macau, na China, e olhei com um misto de medo e desprezo assassino para um bichinho parecido com uma barata e quis, imediatamente, matá-lo. O meu aluno rapidamente disse: “Não mata não, é do tipo comestível”.
Talvez seja fácil entender nos livros uma outra cultura. Mas viver e ver nela qualidades superiores à nossa cultura, no dia a dia, não é fácil.
Tenho lido nos jornais sobre dados de mortos na China e em outros países do Ocidente (Europa e Estados Unidos). Com frequência a primeira frase é: como a China não é um pais democrático, os dados podem não ser corretos. Essa afirmação é em parte verdadeira. Só em parte. Assim como também é verdade afirmar que nenhum país do Ocidente democrático dispõe ainda de condições para avaliar com exatidão o número de mortos no seu respectivo país. Mas essa segunda observação sobre os países democráticos não vem na sequência. Por quê?
Avaliações sustentadas em comparações planetárias exigem que se levem em conta algumas variáveis semelhantes e muitas diferentes. O pensamento chinês está contido nos ideogramas. Os ideogramas, assim como as metáforas, articulam em si muitos significados, exigem dos seus falantes uma capacidade grande de abstração, um trato apurado com os números, as proporções e os símbolos. Os chineses têm uma capacidade admirável de manipular os números. Vi crianças fazerem contas complexas com uma rapidez incompreensível para mim. É inesquecível e surpreendente a rapidez com que as moças do xerox contavam as folhas de um livro, tanto na universidade como nas lojas de cópias.
Demorei para compreender o lugar onde se sustentava essa habilidade.
Um dia, um aluno meu, em meio a uma conversa sobre racionalidade no Ocidente e no Oriente, me falou que se surpreendia com a irracionalidade na América do Sul de se criar vacas e não patos para comer. Imediatamente falei que nós dois, igualmente, poderíamos estar falando a partir de preconceitos, em razão de o meu mundo ser habitado por vacas e o dele, por patos, justificando o preconceito dele com as vacas e o meu com os patos. Colocação tipicamente ocidental. Ele, assustado, me respondeu: “Você sabe quanto uma vaca come até ficar adulta e virar carne no supermercado? E quanto um pato consome até ir para a panela?”. A conta complicou porque ele começou a dissertar sobre número de habitantes, território ocupado pelos bichos, pôs tudo no papel e disse: “É um absurdo, você não vê?”.
Os chineses, em seu cotidiano, pensam com os números, com as quantidades, com as proporções. Têm um apreço enorme e justificável pelo jogo (Macau é notável pelos seus cassinos). Não me assusta o fato de a sociedade ter se dado muito bem com as novas tecnologias e com a informática e ter utilizado todos esses instrumentos no combate ao novo coronavírus.
Talvez esteja na hora de o Ocidente, as populações portadoras de uma língua de índole sucessiva (sujeito, predicado e verbo/passado, presente e futuro) respeitarem e valorizarem o conhecimento dos Outros e o uso acertado de informações em grande quantidade. Estamos diante de uma qualidade dos chineses expressa em seus ideogramas e em sua capacidade de abstrair. Da mesma forma, quando falamos em democracia, estamos diante de uma qualidade de algumas sociedades do Ocidente expressa na sua retórica (democracia).
A China desenvolveu muito a inteligência artificial, assim como uma complexa vigilância digital. Ela e outros países da Ásia são marcados por uma cultura mais coletivista do que individualista. Provavelmente é possível que ambas caminhem para uma biopolítica digital (Byung-Chul Han). Solução ou perigo à vista? Antes de essas categorias poderem se transformar em uma política (boa ou má), é importante reconhecer que suas origens estão ancoradas em conhecimentos científicos (matemáticos) muito desenvolvidos e que foram aplicados corretamente durante a epidemia em países como China, Coreia do Sul e Cingapura. É justo reconhecer os fundamentos do conhecimento.
O trabalho com grande quantidade de dados, de informações, de tecnologia e seu processamento permite a diferentes sociedades armazenar e analisar dados que, se bem utilizados (com ética), poderão servir também às democracias e ao ser humano tal como a tradição humanista nos ensinou, valorizando sempre, na diferença, o Outro.
Janice Theodoro da Silva é professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP