As mudanças que ocorreram no curso de Medicina da USP, em São Paulo, com a pandemia de covid-19 são relatadas em artigo publicado na última edição da revista Clinics. Adotadas a partir de um diálogo constante entre alunos e professores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), as alterações incluíram a substituição das aulas teóricas presenciais por Ensino a Distância (EAD). Nesse processo, houve o fornecimento de infraestrutura para os professores gravarem as aulas e de chips aos estudantes que não tinham acesso à internet. Parte das atividades práticas foi suspensa, porém foi organizado um programa de voluntariado para que os alunos pudessem auxiliar nas atividades do complexo hospitalar da FMUSP enquanto não acontecia a retomada, iniciada em julho.
Segundo Lucas Albuquerque Chinelatto, um dos autores do texto, a ideia de produzir o artigo iniciou-se na mentoria do professor Flávio Hojaij e envolveu alunos de diversos anos, além dos professores Milton Arruda Martins e Patricia Zen Tempski, que coordenaram as mudanças no curso de graduação da FMUSP. “O principal objetivo deste relato era descrever à comunidade científica quais foram os efeitos para os alunos de graduação das alterações que se fizeram necessárias devido à epidemia da covid-19”, afirma.
Lucas explica que do primeiro ao terceiro ano, as atividades práticas realizadas no complexo hospitalar da USP, que inclui o Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP e o Hospital Universitário (HU), são poucas e têm como principal aspecto introduzir o aluno à propedêutica e cuidado com os pacientes. “Desta forma, elas foram canceladas e manteve-se o curso teórico, parte majoritária nestes anos, por meio do EAD”, relata. “A reposição das aulas práticas está prevista para o ano de 2021, conforme as recomendações da Pró-Reitoria de Graduação da USP.”
No quarto ano, também chamado de pré-internato, o autor observa que cerca de metade do curso é prático e visa a fazer com que o aluno desenvolva habilidades essenciais no cuidado dos pacientes. “A prática é fundamental para que o aluno esteja apto a prestar assistência, sob a devida supervisão de um profissional médico, no quinto e sexto anos, quando acontece o internato”, diz. “Essas atividades práticas foram também suspensas, porém, dada a quantidade e a importância delas para preparar os alunos para assistência dos pacientes no futuro, foram retomadas no dia 13 de julho, em grupos menores e com as devidas precauções.”
Alterações nas atividades
De acordo com Lucas, o quinto ano, primeiro do internato, tem sua carga horária concentrada principalmente em atividades assistenciais relacionadas a ambulatórios e enfermarias. “Elas foram, em quase sua totalidade, muito reduzidas no início da epidemia na cidade de São Paulo, devido à preparação do HC para receber pacientes com covid-19. Muitos médicos que realizavam a supervisão dos alunos foram também deslocados para compor as diversas áreas de atendimento aos pacientes com a doença”, aponta. “Dessa forma, a qualidade de ensino foi muito afetada e a partir de uma sugestão dos alunos, a graduação decidiu parar por completo as atividades do quinto ano, uma vez que elas neste período são essencialmente práticas.”
Ao mesmo tempo, a graduação criou um programa de voluntariado a fim de permitir que os alunos, agora com tempo livre, pudessem ajudar com as atividades assistenciais, de pesquisa e de organização do complexo hospitalar da FMUSP. “O quinto ano voltou às suas atividades no dia 6 de julho, após cuidadosa avaliação em conjunto feita pela graduação e pelos alunos dos riscos e benefícios ao ensino e à população”, ressalta o autor.
O sexto ano, último do curso de Medicina, teve suas atividades mantidas, com apenas algumas modificações devido a mudanças de fluxos e áreas de atendimento no complexo hospitalar. “Este ano da faculdade é responsável por atuar na assistência de pacientes em unidades de emergência, as quais não diminuíram demanda ou foram encerradas”, destaca Lucas. “Desta forma, sua presença era fundamental para a devida manutenção do hospital, assim como foi avaliado que seu ensino estava pouco comprometido.”
Adaptações nas aulas
O autor relata que as estratégias para adaptar o curso foram implantadas através de um diálogo constante entre alunos e professores, estes representados pelo professor Martins, presidente da Comissão de Graduação da FMUSP. “Nas turmas do primeiro ao quarto ano, nas quais houve a mudança de aulas presenciais para EAD, foi dado um período de férias de duas semanas. Professores e alunos tiveram a oportunidade de fazer as adaptações necessárias para transformar o curso em EAD”, diz. “Ao mesmo tempo, a faculdade tomou a iniciativa de garantir auxílio aos professores para a gravação e transmissão de aulas no prédio da FMUSP e de enviar chips de internet aos alunos que, por qualquer motivo, não tivessem acesso adequado em suas respectivas moradias.”
Lucas avalia que todos os cursos conseguiram ser mantidos com as adaptações sem prejuízo na carga horária total dos alunos, procurando garantir a manutenção da qualidade. “Houve também ganhos no campo de saúde mental e a atenção que os alunos passaram a ter para atividades não acadêmicas, tão importantes para a formação quanto o estudo formal”, observa. “Os resultados positivos, principalmente com relação ao contorno das dificuldades de transformar um curso 100% presencial para um a distância, só foram possíveis graças à atuação de diversas frentes, entre elas o suporte psicológico aos alunos pela unidade do Serviço de Assistência em Saúde Mental (GRAPAL), coordenação centralizada pelo Centro de Desenvolvimento de Educação Médica (CEDEM), assistência técnica do Departamento de TI da FMUSP e o voluntariado dos alunos.”
Segundo o autor, a receptividade dos alunos foi constantemente avaliada. “Essa avaliação se deu por três maneiras principais: questionários periódicos montados para avaliar as diversas disciplinas de cada ano do curso, transmitidas aos alunos de cado ano, grupos em aplicativo de mensagens conectando os representantes das turmas e subgrupos com os preceptores de graduação e o CEDEM, e reuniões com os representantes de turma ou subturmas da faculdade, com transmissão para todos os alunos e uso de plataforma para perguntas”, descreve. “Também foi importante a contribuição dos dois preceptores da graduação, Matheus Belloni Torsani e Marina Alves Martins Siqueira, essenciais na coordenação e no contato entre alunos e professores.”
A produção do artigo teve a participação de Lucas Albuquerque Chinelatto, Thamara Rodrigues da Costa, Gustavo Henrique Pereira Boog e Vitor Macedo Brito Medeiros, alunos da graduação, e de Flavio Carneiro Hojaij, Patricia Zen Tempski e Milton Arruda Martins, professores da FMUSP. O artigo “O que você ganha e o que perde no COVID-19: percepção de estudantes de medicina sobre sua educação” foi publicado na revista Clinics em 26 de junho.
Mais informações: e-mail l.chinelatto@fm.usp.br, com Lucas Chinelatto