Na física, sistemas quânticos são aqueles em que o comportamento das moléculas, átomos e partículas não pode ser descrito por nenhum modelo clássico. Um exemplo é um sistema quântico de spins. O spin pode ser definido como a manifestação quântica da rotação dos elétrons (que são partículas com carga elétrica dentro dos átomos). Quando vários elétrons apresentam uma mesma rotação, ou seja, um mesmo spin, se diz que todo o sistema se encontra num mesmo estado, que é chamado de fase quântica. Mudanças entre fases quânticas ou transições de fase quântica podem acontecer sob condições extremas de temperaturas muito baixas, pressão e campos magnéticos altos, o que torna impossível medir suas propriedades, como o calor (quantidade de energia) pelas técnicas tradicionais.
No Instituto de Física (IF) da USP, um experimento realizado pelo professor Júlio Larrea, com colaboração internacional, testou uma técnica inovadora para medir com alta precisão o calor existente em um sistema quântico com temperaturas próximas ao zero absoluto (273 graus Celsius negativos), altas pressões e intensos campos magnéticos. Por meio do método, os físicos verificaram que as transições de fase em um sistema quântico de spins têm características semelhantes às da passagem da água do estado gasoso para o líquido. Os resultados do trabalho poderão auxiliar no desenvolvimento de aplicações que exijam transporte de energia sem perdas, como sistemas de computação com altíssima capacidade de processamento, em que é necessário medir a energia retida na forma de calor.
O trabalho é apresentado em artigo publicado no site da revista Nature em 14 de abril deste ano. Os resultados do experimento mostram que a transição de fase no sistema quântico de spins, quando acontece a mudança de estado, é semelhante à que acontece quando a água passa do estado líquido para o gasoso.
“Quando a água ferve a 100 graus Celsius, em pressão atmosférica, observamos que o líquido muda para gás, ou seja, vapor, porém nesta transição de fase que se inicia em pressões e temperaturas menores, o líquido e o gás coexistem ao mesmo tempo, causando um salto abrupto na densidade das partículas, o que é chamado pelos físicos de transição de fase primeira ordem ou transição de fase descontínua”, explica o professor ao Jornal da USP. “No sistema quântico de spins, onde a transição de fase quântica acontece na temperatura de zero absoluto, em pressão crítica, dois estados de spin, ou seja, duas rotações diferentes dos elétrons, coexistem simultaneamente, indicados por um salto descontínuo na densidade dos spins, o que é classificado como transição de fase quântica de primeira ordem.”
De acordo com Larrea, na água, com o aumento de temperatura e a pressão (a níveis mais altos que a pressão atmosférica), a transição de fase de primeira ordem termina em um nível de pressão e temperatura chamado de ponto crítico da água. “Nesse momento, não há mais mudança abrupta na densidade de partículas devido à formação de um único estado, chamado de superfluido. Esse ponto crítico é chamado de transição de segunda ordem ou transição de ordem contínua”, relata. “No sistema quântico de spins, a transição de fase de primeira ordem também termina em um ponto crítico. A diferença é que, ao contrário da água, não há um único estado, mas diferentes configurações e ordenamentos dos spins. Isso acontece porque no mundo quântico, de certa forma, existem muitas possibilidades de as partículas quânticas se manifestarem, se ordenarem ou se correlacionarem.”
Para entender como acontece a transição de fase no sistema quântico, foi necessário medir suas propriedades físicas em nível quântico, por meio da técnica de calor específico, que mede a quantidade de energia interna do sistema retido como calor. “Conseguimos pela primeira vez medir com alta precisão o calor específico em uma amostra extremamente pequena e em condições extremas simultâneas: temperaturas próximas ao zero absoluto, altas pressões e intensos campos magnéticos”, afirma Larrea. “Foi medido o calor específico do antiferromagneto frustrado SrCu2(BO3)2, também conhecido como SCBO. Este material foi escolhido por ser um sistema puramente quântico, com interação entre spins, que são a representação da rotação do elétron, em geral associada ao magnetismo.”
Condições extremas
A fim de atingir as condições necessárias à medição, uma amostra do SCBO é depositada em uma película, chamada de filme fino, e confinada em um volume líquido, colocado em uma célula de pressão. “Após a aplicação da pressão, esta célula é montada em contato com um sistema de refrigeração de diluição de mistura de isótopos de hélio, dentro de um criostato de hélio líquido, que pode atingir temperaturas muito próximas ao zero absoluto, que equivale a 273 graus Celsius negativos”, descreve o professor. “Este criostato também conta com uma bobina que permite aplicar o campo magnético de grande intensidade.” As medidas de calor específico foram realizadas no laboratório do professor Henrik Ronnow, da Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL), na Suíça.
Um grande desafio do experimento foi medir o calor específico do SCBO em condições extremas simultâneas, o que não pode ser feito com sistemas comerciais de medição. “Nosso método consiste em trazer a medida do calor específico da amostra, isolando-a do líquido e da célula de pressão, usando técnicas de calorimetria com aplicação de calor em corrente elétrica alternada”, descreve o professor ao Jornal da USP. “Primeiramente, montamos o calorímetro na superfície da amostra, colocada na película através de deposição de resistências e termômetros usando o estado da arte de deposição de filmes finos e da microeletrônica, o que chamamos de ‘lab on the slab’”.
“Em segundo lugar, reduzimos a perturbação ocasionada pelo ruído eletrônico da instrumentação e do laboratório”, explica Larrea. “Isso permitiu o envio de calor em forma alternada e modulada, como se fosse uma onda de calor se propagando na amostra, bem como a detecção de pequenos sinais eletrônicos em temperaturas muito baixas devido aos efeitos quânticos no calor específico.”
“Medir o calor específico do SCBO sob simultâneas condições extremas foi como medir o calor de um nadador dentro de quatro piscinas olímpicas, as mesmas que se encontram comprimidas em pressões 27 mil vezes maiores à pressão atmosférica e campos magnéticos 300 mil vezes maiores ao campo magnético da Terra, enviando um sinal de calor para o nadador desde fora das piscinas”, compara o professor. “Nossa abordagem de medir calor específico com corrente alternada contribui para aprimorar os métodos de medição de propriedades físicas em sistemas puramente quânticos.”
A descoberta das transições de fase quântica proporciona uma rota promissora para a geração de materiais funcionais em aplicações da spintrônica (eletrônica baseada em spin) e computação quântica, destaca Larrea. “No caso da spintrônica, estados puramente de spin localizados em diferentes posições atômicas podem servir para transportar a informação quântica através dos spins sem dissipação de energia”, aponta. “Para o caso da computação quântica, o material SCBO mostra como diferentes estados de spin podem ser formados próximos da transição de fase quântica e em temperaturas finitas, podendo proporcionar uma nova rota para a geração de qbits, a unidade da informação quântica, robustos à temperatura finita, os quais são essenciais para a engenharia dos computadores quânticos.”
O estudo é descrito no artigo A quantum magnetic analogue to the critical point of water, publicado na revista Nature em 14 de abril. A pesquisa teve a participação de Júlio Antonio Larrea Jiménez, do IF, H. M. Rønnow, F. Mila, E. Fogh e B. Normand, da Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL), na Suíça, P. G. Crone e P. Corboz, da University of Amsterdam, na Holanda, M. E. Zayed, da Carnegie Mellon University, no Qatar, R. Lortz, da Hong Kong University of Science and Technology, na China, E. Pomjakushina e K. Conder, do Paul Scherrer Institute, na Suíça, A. M. Läuchli, da Universität Innsbruck, Innsbruck, na Áustria, L. Weber, S. Wessel, da RWTH Aachen University, na Alemanha, A.Honecker, da CY Cergy Paris Université, na França, e Ch. Rüegg, do Paul Scherrer Institute, ETH Zürich, Hönggerberg, Switzerland e University of Geneva, na Suíça.
Mais informações: e-mail larrea@if.usp.br, com o professor Júlio Larrea