Estudo mostra diferenças na abordagem sobre África em livros de geografia alemães e brasileiros

Pesquisadores encontram também nos livros didáticos de geografia reflexos positivos da lei brasileira que obriga o ensino de história da África; nos livros alemães analisados, passado colonial não é sequer mencionado

 26/07/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 27/07/2023 às 15:04

Texto: Ivan Conterno (estagiário)*

Arte: Gabriela Varão (estagiária)**

Livros didáticos de Geografia do ensino fundamental e médio - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Promover a história e a cultura africana no mundo é uma preocupação crescente desde que as ex-colônias conquistaram suas independências a partir da segunda metade do século passado. No Brasil, esse assunto responde ao anseio da população de ascendência africana por conhecer sua história. Neste ano, a Lei Federal 10.639/03 completa vinte anos. Foi essa lei que exigiu a ampliação do conteúdo sobre a história e a cultura da África nos currículos escolares brasileiros. Pensando em como os objetivos educacionais de cidadania e valorização da diversidade cultural são considerados também por países que tiveram papel central na colonização do continente africano, o artigo A África nos livros didáticos de Geografia de São Paulo (Brasil) e de Berlim (Alemanha) apresenta uma comparação de materiais educacionais considerando os objetivos educacionais de cada currículo escolar.

A análise tem como autores Antônio Gomes de Jesus Neto, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Verena Reinke, pesquisadora da Universidade Humboldt de Berlim (HU Berlin) e o professor Péter Bagoly-Simó, da mesma universidade alemã.

O texto faz parte do dossiê Diálogos sobre o desenvolvimento e suas abordagens no ensino de geografia, disponível na revista Geousp. O trabalho é fruto da parceria viabilizada pela Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional (Aucani).

Grupo brasileiro apresentando pesquisas na Humboldt-Universität, na Alemanha – Foto – Fernanda Laize Silva de Lima

Mónica Arroyo, professora da FFLCH e coordenadora do dossiê, conta ao Jornal da USP que os livros do Brasil mostram as diferenças regionais no interior do continente, como a África se insere na divisão internacional do trabalho e de que maneira os africanos foram trazidos escravizados para outros continentes. Por outro lado, os livros europeus analisados trabalham mais com temas como a questão agrária e a questão do meio ambiente. “Ainda há muitos estigmas em relação à África e o principal é que ela seria homogênea. Os livros didáticos deveriam mostrar sua heterogeneidade e apresentar diferentes situações geográficas”. 

Mónica Arroyo - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Mónica Arroyo - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Antônio Neto - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Antônio Neto - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Os pesquisadores compararam a quantidade de conteúdo sobre o continente africano e a escala dos espaços representados nos livros usados pelos alunos da cidade de São Paulo e de Berlim. Os autores mostram como a abordagem temática adotada nos livros alemães é insuficiente para compreender os impactos das estruturas globais sobre cada país.

Para Antônio Neto, esse esforço é essencial para tratarmos a população de origem africana com respeito. “Qual é a realidade africana? Por que refugiados, comerciantes, empresários, estudantes e fluxos religiosos vêm ao Brasil?”, provoca o geógrafo. “O livro didático é a maneira de os estudantes aprenderem isso desde cedo. Talvez se as pessoas estudarem isso desde a escola, isso não se torne algo que chegue tarde já com um preconceito estruturado.”

De acordo com os pesquisadores, a África é pouco representada no material escolar alemão. Isso dificultaria o entendimento das especificidades de cada país entre os estudantes berlinenses, como conta o professor Péter Bagoly-Simó, da HU Berlin, ao Jornal da USP. “Nos livros didáticos estudados, tínhamos uma representação bastante marginal em relação à África em comparação com outros continentes. Isso se deve ao fato de que tradicionalmente a África é usada para falar sobre um conjunto bastante diferente de tópicos mais conectados às estruturas naturais, que podem ser encontradas no Norte e no centro da África.”

Em São Paulo, foram analisados dois livros didáticos brasileiros incluídos no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e frequentemente adotados pelos professores, um do ensino fundamental e outro do ensino médio. Já no caso de Berlim, os pesquisadores se concentraram em dois livros didáticos, dos níveis secundários 1 e 2 alemães, que têm como base o plano de estudos do Instituto Estatal de Escolas e Meios de Berlim-Brandemburgo. Berlim, a capital do país, é circundada pelo estado de Brandemburgo, com o qual compartilha o mesmo currículo escolar. Em ambos os casos, os livros estudados correspondem ao que, no Brasil, seria o período que vai da oitava série do fundamental até o fim do ensino médio.

Os pesquisadores digitalizaram as páginas com referências e discussões sobre o continente africano e inseriram em um programa de computador para a análise qualitativa e quantitativa do material. Os conteúdos foram agrupados em seis grandes categorias temáticas: natureza, história, população, política, modernização e desenvolvimento e urbanização. Os autores da pesquisa classificaram também se cada informação apresentada era abordada em escala continental, regional ou nacional.

Ambiente do software utilizado - Foto: Reprodução/MAXQDA

Enquanto a abordagem regional no material brasileiro chega a dedicar dois capítulos inteiros focados em unidades territoriais africanas, o ensino alemão traz considerações gerais sobre o continente africano apenas para ilustrar processos mais amplos.

Além disso, alguns livros alemães sequer mencionam o passado colonial africano. A Alemanha foi anfitriã da principal conferência sobre a partilha da África, realizada entre 1884 e 1885, tendo estabelecido seu domínio sobre territórios onde hoje são o Burundi, os Camarões, a Namíbia, Ruanda, a Tanzânia e o Togo.

As paisagens naturais, tratadas mais extensivamente nos didáticos brasileiros, aparecem nos livros alemães em temas como a desertificação e a agricultura sustentável, de forma reunida. No mesmo sentido, enquanto os estudantes paulistas têm acesso a representações de uma África urbana e moderna, nos livros alemães a urbanização é praticamente ignorada.

Entretanto, em São Paulo, as unidades dedicadas à África estão no final dos livros. Se não houver tempo hábil para todo o material durante o ano, esse conteúdo pode deixar de ser apresentado na prática.

Currículos escolares

Em 1999, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) concluiu a coleção História Geral da África, um grande incentivo à difusão de um conhecimento quase esquecido sobre o continente. Embora o conteúdo sobre o continente africano esteja previsto no material escolar usado pelos berlinenses, não há recomendações sobre o ensino da África por parte dos órgãos governamentais.

“A Alemanha tem um sistema educacional federal. Porém, as diretrizes do governo não são necessariamente obrigatórias para os estados federados, já que esses mesmos estados fazem seus currículos. Existem algumas diretrizes, obviamente, mas elas não vão ao ponto de examinar o conteúdo”, explica o professor alemão.

No Brasil, a força do movimento negro e o apoio do governo federal nas últimas duas décadas possibilitou uma representação mais aprofundada e responsável do continente nos livros didáticos. O principal avanço nesse sentido foi a Lei 10.639/03, que completou 20 anos neste ano. Antônio Neto esclarece que ela torna o ensino de história da África e dos negros no Brasil obrigatório no currículo escolar, e que essa iniciativa tem reflexos em outras disciplinas.

“A lei do Brasil obriga o estudo da África na história, mas não menciona essa obrigatoriedade para a geografia”. A lei exige que o conteúdo sobre história e cultura africanas seja ministrado especialmente nas áreas de educação artística, de literatura e de história. “Porém a geografia aproveitou esta circunstância e reforçou o conteúdo sobre o continente, até porque a variável tempo (a história) é importante na disciplina.”

Mesmo assim, os autores enfatizam a necessidade de promover ainda mais esse conteúdo, passando pela complexidade e aprofundando os temas abordados. Isso porque a manutenção dos avanços conquistados é constantemente ameaçada.

Tema quente

Em visita recente ao Museu Etnológico de Berlim, o descendente da longa dinastia que governou o povo bamum, Nabil Njoya, sentou-se no trono cedido por seu bisavô aos alemães em 1908. Ao invés de uma réplica, como pretendia o rei bamum na época, o trono original teria sido enviado ao imperador alemão Guilherme II. O herdeiro do trono bamum havia sido convidado à visita, embora não fosse esperado que se sentasse no trono, já que se tratava de um item museológico. Esse fato levantou a discussão no mundo todo sobre as heranças do passado colonial dos países europeus na África.

Trono Mandu Yenu, do rei Ibrahim Njoya, levado pelos alemães ao imperador alemão Guilherme II e atualmente exposto no Museu Etnológico de Berlim - Foto: Ji-Elle/Wikimedia Commons

Antônio Neto explicou à reportagem que o passado colonial é polêmico e o assunto está em alta na Alemanha. “Eu fui ao Museu Etnológico de Berlim e lá eles dizem que os artefatos são fruto de saques ou exploração. Eles falam sobre esse movimento de devolver as peças, sobre o genocídio do povo herero, na Namíbia. No discurso, eles estão preocupados com a questão de como lidar com a África, especialmente com as ex-colônias, como Camarões, a Namíbia e o Togo, onde os alemães cometeram mais violências.”

Entender as origens do desenvolvimento no continente e suas relações com o resto do mundo é uma dos objetivos do ensino de geografia da África em países que carregam dívidas históricas com os povos do continente. Isso se relaciona com a população de origem africana no Brasil, fornecendo uma conexão com suas raízes ancestrais e valorizando sua história e cultura. 

Em Berlim, local onde se firmou a partilha da África, a análise crítica da colonização ajuda a promover uma compreensão mais profunda das relações históricas com a Europa. “As histórias dos países são diferentes, mas a Alemanha também está nesse movimento de reparação, porque há muitos africanos no país hoje. Os museus e as peças expostas são um tema mais quente. Isso tudo faz com que a África seja importante também nos livros didáticos”, conclui o pesquisador.

Mais informações: e-mails antonio.gomes.neto@usp.br, com Antônio Gomes de Jesus Neto, e mmarroyo@usp.br, com Mónica Arroyo

*Sob orientação de Valéria Dias e Fabiana Mariz

**Sob supervisão de Moisés Dorado

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