A proibição da realização de uma iniciativa popular com atividades de comércio ligadas à cultura negra, numa praça pública de São Paulo, fez surgir um movimento de resistência e a ideia acabou se transformando num “plano de negócios”. A Feira Preta iniciou suas atividades em 2002, na Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros, na zona oeste da cidade, e reuniu em sua primeira edição um público de 5 mil pessoas. “No começo, quando era realizada em espaços públicos, a participação popular era de 50% de brancos e 50% de negros. Atualmente, nos espaços privados, 90% do público é negro”, contabiliza a antropóloga Gleicy Mailly da Silva, que realizou um estudo sobre a iniciativa.
Durante sua pesquisa de doutorado, realizada entre 2012 e 2015, e defendida em 2016 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, na área de Antropologia Social, Gleicy acompanhou as atividades do Instituto e fez entrevistas com Adriana Barbosa (formada em Gestão de Eventos), idealizadora da iniciativa. “A partir daí pude reconstituir a trajetória da Feira Preta, que começou em 2002 como uma feira de rua e que, durante seus 16 anos de existência, mobilizou mais de mil produtores culturais, entre empreendedores e artistas, fazendo circular em torno de R$ 4 milhões na comunidade negra”, conta.
“Diante das mudanças que vinham ocorrendo no País, queria refletir a respeito das relações étnico-raciais, dando ênfase nas conexões entre engajamento político, consumo e produção cultural”, conta Gleicy.
Ela conheceu a Feira Preta por intermédio de amigos. “Interessei-me pela combinação de atividades que o evento propunha com a celebração da cultura negra, a valorização estética e o consumo de produtos segmentados.”
Resistência
Na primeira edição da feira, cerca de 40 expositores estiveram na Praça Benedito Calixto. “Essa praça é famosa por sua tradicional feira de artes, artesanato e antiguidades”, lembra Gleicy. Já no ano seguinte, como conta a pesquisadora, ao tentar organizar a segunda edição, Adriana Barbosa se depara com um abaixo-assinado feito pela Associação de Moradores da região, incomodados com a movimentação do público no local, solicitando que a feira deixasse a praça.
Em reação a essa ação, entendida pelos organizadores do evento como um caso de racismo institucional, e com o apoio de setores do Movimento Negro, a equipe organiza também um abaixo-assinado, contendo mais de 3 mil assinaturas, contra sua saída da praça”, descreve Gleicy. Mas, por não conseguirem reverter a situação com a subprefeitura, a Feira Preta é obrigada a buscar novos espaços. Em 2003, em sua segunda edição, a feira é realizada no estacionamento da Assembleia Legislativa de São Paulo, em frente ao Parque do Ibirapuera”, conta. Mas, apesar de reunir naquela oportunidade mais de 10 mil visitantes, uma forte chuva provoca a perda de barracas e prejuízos à equipe. É quando Adriana Barbosa decide que o evento não será mais realizado ao ar livre.
Assim, a primeira edição em espaços fechados acontece em 2004, na Academia Brasileira do Circo, no bairro da Barra Funda. A partir de 2005, a Feira Preta começa a ser realizada no Pavilhão do Anhembi, na zona norte da cidade. “Com a cobrança de ingresso, o público, que nas edições anteriores havia ultrapassado 10 mil pessoas, cai para 5 mil. Ao mesmo tempo, a presença da Feira Preta no Anhembi passa a exigir que os expositores paguem o aluguel de seus estandes e emitam nota fiscal na comercialização de seus produtos.”
Tendo em vista que até aquele momento a maioria dos expositores trabalhava de maneira informal, torna-se necessário um processo de formalização para manter as condições de realização do evento no pavilhão, o que de certo modo também os estimula a pensar em termos de uma ampliação de suas atividades no mercado. “Nesse período, Adriana Barbosa começa a fazer cursos sobre empreendedorismo e capacitação no Sebrae e o evento se transforma aos poucos em um ‘plano de negócios’”, informa Gleicy.
Plano de negócios
Em 2009, é criada a Organização Não Governamental (ONG) Instituto Feira Preta com o objetivo formalizar e qualificar os artistas, artesãos e microempresários, e incentivar o acesso de políticas públicas para cultura. Além do Pavilhão do Anhembi, algumas edições da feira também passam a acontecer no Centro de Exposições Imigrantes.
Para a pesquisadora, é importante observar que a idealização e desenvolvimento da Feira Preta correspondem a um importante período de mudanças no País, que, na primeira década dos anos 2000, passa por um sensível crescimento econômico. Na opinião de Gleicy, quatro processos conjugados são relevantes para compreender esse momento: “A ampliação das formas de acesso ao ensino superior, a ampliação das políticas de cultura, o aumento do poder de consumo da população em geral, mas particularmente das camadas menos favorecidas, e o crescimento expressivo de um novo perfil de trabalhador, representado na figura do empreendedor”, acredita.
A partir de 2011, a Feira Preta torna-se um festival e passa a investir na ampliação de suas atividades, dando maior relevância à circulação nos espaços urbanos, particularmente nas regiões centrais da cidade.
Nesse novo modelo, o evento que se restringia aos espaços de exposições se estende em parcerias com outras instituições e associações, como o Centro Cultural São Paulo, o Museu Afro Brasil e, mais recentemente, a Praça das Artes, conectando diferentes atividades (palestras, exposições e shows). Essa estratégia é um modo de atingir maior público para a festividade anual, que, ainda sem uma data fixa, acontece entre os meses de novembro e dezembro.
A tese de doutorado Empreendimentos sociais, negócios culturais: Uma etnografia das relações entre economia e política a partir da Feira Preta em São Paulo foi orientada pela professora Laura Moutinho, do Departamento de Antropologia da FFLCH da USP.
Mais informações com Gleicy Silva no e-mail gleicysilva@hotmail.com