“A ideia de cosmopolítica é algo que está juntando muito os ditos antropólogos da ciência e os antropólogos que trabalham com povos indígenas, não ocidentais de uma maneira geral”, conta Renato Sztutman, professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, ele próprio um antropólogo que trabalha com povos indígenas. Essa palavra extensa, “cosmopolítica”, é um termo cunhado pela filósofa da ciência Isabelle Stengers a partir de estudos sobre a história da ciência. “A ideia de cosmopolítica entra, se eu entendo bem, como uma tentativa de politizar o fazer científico. Mas não é um politizar externo, você olhar de fora e ver quais são os interesses políticos em torno das teorias científicas. Acho que não é isso. Um pouco a ideia é mostrar como que fazer ciência é construir mundos”, explica Sztutman.
O curioso termo cunhado por Stengers está no centro do tema do dossiê da edição número 69 da Revista do IEB, que foi batizado como “Entreviver – desafios cosmopolíticos contemporâneos”. Os artigos partem de uma problematização feita pela filósofa da ciência e outros autores com quem ela dialoga: se a atividade humana tomou proporções geológicas com a instalação do Antropoceno, será que ainda podemos falar em uma divisão estrita entre o que é humano e o que é natureza?
Continuidade entre social e natural
Segundo Stelio Marras, professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e um dos organizadores do dossiê, a proposta do dossiê foi justamente reunir os colegas da antropologia para refletir sobre problemas como a mudança climática e os desastres ecológicos.
Marras explica que as referências a vínculos entre humanos e não humanos aparecem com frequência nas etnografias dos povos que ele chama de minoritários. “A atenção que a gente está sendo convidado a desenvolver agora é levar isso a sério e não purificar, não separar”, afirma ele.
Feitiço capitalista
Outro questionamento de Isabelle Stengers – que, aliás, assina um artigo na seção de documentação na edição atual da Revista do IEB – diz respeito à separação entre ciência e política. Nesse ponto, a advertência da autora aos antropólogos é contra o uso da tolerância de uma forma negativa. “O trabalho inteiro da Isabelle Stengers está mostrando como que a ciência sempre disputou com a magia, até que ela chegou num ponto, com o advento e a consolidação das ciências modernas, de desqualificação absoluta desses outros conhecimentos. Você desqualifica e, no máximo, tolera como uma coisa possível. E o que ela vai dizer é que, não, a gente tem que levar essas outras coisas a sério e (discutir) como que elas podem problematizar inclusive a ciência. Isso seria um ato político”, diz Sztutman.
“Toda briga séria naquele universo, isso parte da minha observação, da minha convivência, redunda em feitiço. Então, acusações de sovinice se misturam continuamente a acusações de enfeitiçamento, por exemplo”, diz a docente, para quem o entrelaçamento entre a entrada de dinheiro e bens e as acusações de feitiçaria não é uma forma equivocada de descrever um problema que afeta as relações sociais daquela comunidade, mas sim a maneira como os Aweti apontam os efeitos do capitalismo sobre suas relações sociais. “Eu queria escapar dessa armadilha que é partir do pressuposto de que eles estão enganados, partir do pressuposto de que o feitiço não existe. Eu estou querendo levar a sério o que eles dizem e pensar como a gente pode levar a sério essa afirmação de que as pessoas brigam mais por causa das coisas de branco e entender que essas brigas se misturam às acusações de feitiçaria, sem desfazer do pensamento e das interpretações deles”.
Por Silvana Salles, do Núcleo de Divulgação Científica da USP
Imagens: Rafael Simões | Edição de video: Silvana Salles e Lucas Satolo