Ao mesmo tempo, médicos que cometeram um erro tiveram risco 67% maior de apresentar sintomas depressivos no futuro – Foto: Yury Klochan/123RF
Um artigo veiculado na revista médica Jama Network Open traz informações relevantes sobre a associação entre saúde mental de profissionais da medicina e erros médicos. Segundo a pesquisadora Karina Pereira Lima, primeira autora do artigo veiculado em novembro de 2019, o texto apresenta um indicador preocupante: um médico com sintomas depressivos tem 95% mais chances de relatar ter cometido um erro médico, na comparação com colegas de profissão que não apresentam estes sintomas. “Existem diversos estudos que demonstram que a depressão e os sintomas depressivos são altamente prevalentes entre médicos, que a prevalência é maior do que na população geral. Isso vai para dois lugares. Claro que há o prejuízo para o próprio médico. E, de duas décadas para cá, os estudos vêm sugerindo que a saúde mental do médico e dos outros profissionais de saúde está associada à qualidade do cuidado que eles prestam aos pacientes”, conta a pesquisadora.
Para chegar aos resultados, Karina e seus coautores fizeram uma revisão sistemática da literatura médica que explora a associação entre saúde mental dos profissionais e erros médicos. A pesquisa foi desenvolvida no período em que Karina esteve na Escola de Medicina da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, para um estágio de pesquisa. Ela viajou durante o doutorado do programa de Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
Não se deve confundir a ocorrência de sintomas depressivos com um diagnóstico de depressão. A literatura médica revisada no trabalho utiliza avaliações por inventário. Isso significa que os médicos que participaram das pesquisas responderam a um questionário que ajuda a aferir condições de saúde mental. Os inventários identificam sintomas típicos, como humor deprimido na maior parte do tempo, perda de prazer e interesse em atividades, alterações de apetite, alterações de sono e sentimento de culpa inadequada. “Esses inventários vão perguntar sobre esses sintomas de depressão. Se a pessoa atinge um determinado score, isso é sugestivo de que ela apresenta depressão”, explica Karina.
No entanto, só seria possível afirmar que esses médicos têm depressão se eles tivessem passado por uma entrevista clínica com um profissional de saúde mental qualificado para estabelecer o diagnóstico – o que não foi o caso.
Relação bidirecional
Além de calcular a probabilidade de médicos relatarem problemas, o trabalho de Karina também sugere que tanto erros médicos podem causar sintomas depressivos quanto o contrário. Nos dados analisados, médicos que cometeram um erro tiveram risco 67% maior de apresentar sintomas depressivos no futuro, na comparação com médicos que não relataram erros. Na direção contrária, a presença de sintomas depressivos resultava em um risco relativo de 62% de relatar um erro médico no futuro.
Os números trazem implicações importantes para o cuidado com os pacientes. Erros médicos estão listados entre as causas dos “eventos adversos” ocorridos dentro de hospitais. Segundo dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar da UFMG, 54.769 pessoas morreram em 2017 em decorrência de eventos adversos graves relacionados à assistência hospitalar. Mais de 36 mil desses casos poderiam ter sido prevenidos. São números que constam no 2º Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, produzido pelo instituto da UFMG. O anuário classifica como evento adverso qualquer incidente que resulte em dano ao paciente.
Para avaliar a magnitude da associação entre erros médicos e sintomas depressivos, os autores do artigo publicado na Jama Network Open analisaram estatisticamente um conjunto de dados extraídos de 11 estudos, utilizando uma metodologia conhecida como meta-análise. Os trabalhos analisados foram selecionados de acordo com alguns critérios, como a indexação em bases de dados da produção científica e ter avaliado os sintomas depressivos nos médicos por meio de inventários validados para a cultura local. País de origem e idioma de publicação não foram fatores considerados na seleção – nove dos trabalhos analisados foram feitos nos EUA, mas houve também publicações do Japão e da Coreia do Sul.
Segundo Karina, a maior limitação desta abordagem está no conteúdo dos estudos selecionados para análise, já que a maioria deles se apoia em relatos anônimos dos médicos, sem verificar as informações por meio de revisão dos prontuários. “Embora a gente tenha estudos demonstrando que a revisão de prontuários e o relato dos médicos, quando perguntados sobre erros médicos importantes, têm uma correlação alta, a gente precisa de mais estudos que vão verificar erros médicos sendo avaliados por outras pessoas, não dependendo do relato do médico em si”, diz a pesquisadora.
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Prevenção e tratamento
Para Sonia Regina Loureiro, professora da FMRP e orientadora de Karina na pós-graduação, reduzir e prevenir a depressão entre os médicos exige dois focos distintos de atenção, um nas instituições e outro nos próprios médicos, especialmente naqueles que são residentes em formação.
As instituições formadoras de médicos devem propor “programas de prevenção ao desenvolvimento e o enfrentamento dos problemas de saúde mental, os quais são frequentes e persistentes” e “avaliações organizacionais contínuas e sigilosas”, afirma Sonia, que é coautora do artigo. Ela defende que as instituições devem também “oferecer além dos treinamentos técnicos estratégias sistematizadas de desenvolvimento de recursos pessoais como parte da formação médica e valorizar e oferecer programas de intervenção que abordem tanto estratégias individuais quanto institucionais de tratamento dos problemas de saúde mental, em especial da depressão”.
Já no nível do indivíduo, Sonia recomenda que os médicos identifiquem sinais e sintomas de depressão e busquem ajuda adequada, evitando a automedicação e valorizando a abordagem farmacológica bem indicada. É preciso também “se abrir para as múltiplas perspectivas de tratamento, não se fechando exclusivamente ao tratamento farmacológico como alternativa, considerando as possibilidades da psicoterapia e de abordagens de relaxamento e outras de autoconhecimento como recursos que podem favorecer a resposta ao tratamento e prevenir as recaídas”, diz a professora.
Ela acrescenta, ainda, que é necessário “desenvolver a percepção das adversidades e desafios pessoais relativos ao exercício profissional do médico, de modo a reconhecer a influência dessas condições na prática médica”.
Mais informações: e-mail pereiralima.k@gmail.com