
O comportamento agressivo dos policiais militares nos trabalhos ostensivos de rua pode estar relacionado aos abusos que eles sofrem dentro da própria corporação. Esta é uma das hipóteses levantadas pela pesquisadora Samantha Lemos Turte-Cavadinha durante sua pesquisa de doutorado finalizada neste ano na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. O trabalho deu enfoque às relações de gênero, mas acabou constatando conflitos que afetavam a saúde psíquica de homens e mulheres.
Segundo a pesquisadora, a estrutura militarizada da instituição molda a subjetividade dos policiais no exercício de suas atividades. Paradoxalmente, as mesmas leis, normas e disciplinas que foram apontadas na pesquisa como queixas, e que restringiam a liberdade individual deles, eram utilizadas como argumentos para que reproduzissem e legitimassem suas condutas abusivas quando estavam em patrulhamento. “A reprodução do comportamento era como uma forma de se aliviarem da carga imposta sobre eles ”, afirma Samantha.
Os resultados foram baseados em dados coletados a partir de entrevistas feitas com sete mulheres e 17 homens policiais militares de uma corporação de Brasília, no Distrito Federal. Como critério para participar do estudo, os policiais deveriam estar atuando no policiamento ostensivo externo e precisariam fazer parte do organograma hierárquico do trabalho militar. A pesquisadora queria saber os fatores que contribuíam para o desequilíbrio emocional da categoria profissional, que em tese deveria estar bem emocionalmente para lidar com uma rotina de trabalho envolvendo pessoas em situações de conflitos, pressão e violência.

Embora a violência urbana das grandes cidades fosse um fator de estresse emocional, a causa principal para ele apontada na pesquisa foi a gestão interna de trabalho da corporação. “A estrutura militar verticalizada, constituída de regras rígidas, disciplina e instrumentos de controle, resultava em abusos de poder e violência psicológica rotineira nas relações entre chefes e subordinados”, relata Samantha.
Diante do fato de não ver saída para minimizar ou impedir a existência de diversas formas de violência no ambiente de trabalho, a pesquisadora percebeu que houve um certo “entorpecimento” das emoções destes trabalhadores. “Eles não tinham a quem recorrer. As inúmeras punições dispostas no regulamento disciplinar da corporação impediam qualquer manifestação de insatisfação ou de queixa com relação a possíveis abusos cometidos por superiores hierárquicos.”
Relações de gênero
Segundo Samantha, a corporação militar é um campo de tensão permanente entre diferentes grupos sociais: por hierarquia (oficiais versus praças); por idade e formação (antigos funcionários com ensino médio versus novatos que possuíam nível superior); e por falta de isonomia e de condições de trabalho entre os gestores (oficiais) e os geridos (praças). Sobre as relações de gênero, a pesquisadora constatou que estas também podiam afetar negativamente o bem-estar das pessoas envolvidas no ambiente de trabalho.

As mulheres sofrem discriminação desde o seu ingresso na carreira militar. Uma pesquisa da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) mostrou que o efetivo das policiais militares em 2011 era inferior a 12%. Nos departamentos internos, o machismo e a discriminação facilitavam a ocorrência de episódios de assédio moral e sexual, práticas que quase sempre ficavam impunes. Além disso, havia outras formas discriminação: a limitação de número de vagas para preenchimento de funções de cargos de chefias, a designação em maior proporção de mulheres para atividades-meio (funções de suporte que não são inerentes ao objetivo principal da instituição) e barreiras à promoção profissional.
A pesquisa apontou sofrimento psíquico tanto entre as mulheres quanto entre homens, “decorrentes do desequilíbrio e de diferentes exigências relacionadas ao estereótipo de gênero”. Eles se queixavam que eram submetidos ao ideal de masculinidade com reforço de comportamentos de agressividade e superexposição a riscos. Elas, por não serem valorizadas e sempre imaginadas como frágeis e incapazes de realizar como um homem o trabalho policial. “O masculino acabava sendo o padrão de referência, mesmo que existissem diferentes formas de exercer a masculinidade e a feminilidade na corporação”, afirma.
Samantha ressalta que trabalhar em ambiente militarizado é deletério para a saúde psíquica de todos os trabalhadores da polícia militar. No que diz respeito a relações de gênero, a pesquisadora afirma a importância de buscar a construção da igualdade nos espaços sociais e profissionais por meio da reeducação do comportamento das pessoas e das formas de entendimento das relações interpessoais.
A tese Violência, relações de gênero e poder: efeitos do trabalho sobre subjetividades e saúde mental de policiais militares foi orientada pela professora Frida Marina Fischer, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da FSP.
Mais informações: e-mail samturte@usp.br, com Samantha Turte