Cachorros de rua. – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“Cavalo de Troia do bem”: cientistas buscam formas inovadoras para tratar a raiva

Composto foi usado para carregar os anticorpos da raiva e soltá-los dentro das células infectadas, inibindo a ação do vírus

06/02/2020
Texto: Valéria Dias

Estudo da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP propõe forma inovadora para tratar a raiva, doença negligenciada que, anualmente, mata mais de 60 mil pessoas no mundo, a grande maioria na África e na Asia.

Os cientistas do Laboratório de Raiva da FMVZ usaram um composto de proteínas – espécie de “cavalo de Troia do bem” – para carregar os anticorpos contra o vírus da raiva até dentro das células cerebrais de camundongos infectados. Os anticorpos conseguiram inibir a ação do vírus de modo intracelular, impedindo a replicação e a infecção das outras células.

Presente de grego

O “cavalo de Troia” foi uma estratégia usada pelos gregos para vencer a Guerra de Troia, narrativa que mescla história e mitologia e que teria ocorrido entre os séculos 12 e 11 a.C. Soldados gregos teriam se escondido em uma grande estátua de madeira, em forma de cavalo. Acreditando se tratar de um presente que simbolizava a rendição dos rivais, os troianos levaram a estátua para dentro da cidade. À noite, os soldados saíram da estátua, abriram os portões de Troia e a cidade foi tomada pelos gregos, que venceram a guerra.

Nos tempos atuais, a expressão “cavalo de Troia” remete à informática: é um tipo de vírus que se camufla em um arquivo aparentemente inofensivo, mas que infecta o computador com um vírus quando acessado.

Aqui, usamos a expressão “cavalo de Troia do bem” como uma analogia para descrever a ação do composto usado como veículo carreador de anticorpos da pesquisa da FMVZ.

O pesquisador Washington Carlos – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 Dos dez animais infectados que receberam o tratamento, sete sobreviveram sem nenhuma sequela neurológica e três morreram em decorrência da raiva. No grupo controle, a mortalidade foi de 90%. Esse grupo também recebeu anticorpos contra raiva, porém, sem o agente carreador. Isto sugere que os anticorpos precisam entrar na célula para inibir o vírus.

Paulo Eduardo Brandão - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O professor Paulo Eduardo Brandão – Foto:

“São resultados iniciais, ainda é preciso testar em outros modelos e ampliar o número de animais submetidos a tratamento para poder confirmar, efetivamente, que esse tratamento é promissor”, pondera o biólogo Washington Carlos Agostinho, autor da dissertação de mestrado que investigou o tema. A orientação do trabalho foi do professor Paulo Eduardo Brandão, coordenador do Laboratório de Raiva. Segundo Brandão e Washington, de todas as doenças negligenciadas que existem atualmente no mundo, a raiva é a mais negligenciada entre elas. A doença é fatal em praticamente 100% dos casos. Até hoje, foram relatados somente cinco casos de pessoas que conseguiram sobreviver após apresentarem os sintomas da doença: todas ficaram com sequelas, como paralisia e dificuldades de fala.

Ultrapassando barreiras

A proposta da pesquisa de Agostinho, Transfecção de anticorpos como terapia antiviral para a raiva, foi desenvolver um tratamento para quando os sintomas da doença já estão instalados. Em relatos de casos humanos há ocorrência de mal-estar, tontura, náuseas e vômitos, dores musculares e de cabeça, dificuldade em falar e engolir, espasmos musculares e confusão mental. Ocorre aumento da temperatura, hipersensibilidade a ruídos e à luz, além de hidrofobia – aversão à água e nome pelo qual a doença também é conhecida.

Transmitido pela saliva de mamíferos infectados, o vírus da raiva, do gênero Lyssavirus, penetra na pele através de escoriações causadas pela mordedura ou arranhadura do animal. O vírus se move ao longo do sistema nervoso periférico, uma rede de neurônios que se ramificam desde as extremidades, como dedos e pés, em direção à medula espinhal. Assim que o vírus da raiva chega aos gânglios da raiz dorsal e medula espinhal, segue em direção ao sistema nervoso central e depois se espalha para o cérebro. Quando os sintomas ocorrem é porque o vírus já percorreu o sistema nervoso periférico e chegou ao sistema nervoso central. Neste estágio, há muito pouco a fazer.

Ciclo de transmissão do vírus da raiva – Infografia: Beatriz Abdalla

Um dos grandes problemas no tratamento da doença, segundo o pesquisador, é fazer os fármacos ultrapassarem a barreira hematoencefálica, uma proteção natural do corpo, espécie de cordão de isolamento que impede que vírus, fungos, bactérias e outros corpos estranhos – entre eles, os anticorpos contra o vírus da raiva – cheguem ao sistema nervoso central. Foi então que os pesquisadores decidiram agir, exatamente, neste local.

“Cavalo de Troia do bem”

Washington explica que o lado externo das células apresenta algumas proteínas aderidas que conferem a elas uma carga elétrica negativa. Já os anticorpos também apresentam carga elétrica negativa. Aqui vale lembrar das aulas de Física, em especial das que tratam de eletricidade: cargas elétricas de sinais iguais se repelem, cargas elétricas com sinais diferentes se atraem.

E é aí que entra o “cavalo de Troia do bem”. Trata-se de um composto lipídico catiônico que apresenta carga positiva. Esse composto foi usado para englobar o anticorpo do vírus da raiva. É como se o composto fosse uma mochila, e o anticorpo, o conteúdo dentro dela. Dentro do composto, o anticorpo foi empacotado pela carga positiva.

Como as células têm carga negativa e o anticorpo dentro do composto passou a ter carga positiva, quando os pesquisadores inocularam o “cavalo de Troia do bem” dentro do encéfalo dos camundongos infectados, célula e anticorpo se atraíram. O anticorpo entrou na célula (processo chamado de transfecção), onde conseguiu atacar o vírus da raiva, impedindo sua replicação e a infecção de outras células.

O composto foi  misturado com uma solução de anticorpos. Ao ser inoculado no cérebro dos animais, o complexo pode ou se fundir diretamente com a membrana plasmática (que delimita as células) e entregar o anticorpo diretamente dentro da célula (1), ou pode ser internalizado por ela e depois se fundir com o endossomo (uma espécie de compartimento responsável pelo transporte e digestão de partículas celulares), liberando o anticorpo no citoplasma (fluido existente dentro das células)  (2). O anticorpo fica livre para neutralizar o vírus (3) – Infografia adaptada de Manual Bioporter Genlantis

“A pesquisa demonstra que é possível utilizar anticorpos produzidos contra o vírus da raiva de um modo que, inovadoramente, faz esses anticorpos entrarem nas células e combaterem o vírus”, destaca o orientador do trabalho, o professor Paulo Eduardo Brandão.

Protocolo de Milwaukee / Protocolo do Recife

Desde a descoberta da vacina da raiva, em 1885, na França, pelo cientista Louis Pasteur, até os dias atuais, foram relatados, em todo o mundo, apenas cinco sobreviventes: dois nos Estados Unidos (2004 e 2017); um na Colômbia (2008); e dois no Brasil (2008, em Pernambuco, e 2019, no Amazonas). Mas todos ficaram com sequelas. Essas pessoas foram tratadas com o Protocolo de Milwaukee, que consiste em induzir o estado de coma no paciente, seguido da aplicação de fármacos antivirais. No Brasil, ele foi adaptado e recebeu o nome de Protocolo do Recife.

Prevenção e tratamento

A principal forma de combate à raiva é a prevenção por meio da vacinação antirrábica de cães e gatos. Entretanto, o vírus também pode ser transmitido por animais silvestres infectados, principalmente morcegos.

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O tratamento consiste na aplicação do soro e da vacina antirrábica. “A vacina é constituída por partes do vírus, a qual irá induzir a produção de anticorpos. Essa produção de anticorpos pela resposta da vacina leva dez dias até que a resposta imunológica do indivíduo possa começar a combater a infecção”, descreve o biólogo Washington Carlos Agostinho.

“Por isso, em caso de acidentes suspeitos, são efetuados os dois procedimentos, paralelamente. Enquanto a vacina ativa o sistema imunológico, o soro faz essa cobertura contra o vírus até que o sistema imunológico esteja apto”, conta.

Agora, os pesquisadores estão buscando publicar os achados em alguma revista científica. Segundo o professor Brandão, os próximos passos do projeto são realizar testes com mais doses desse tratamento e com outros tipos de vírus da raiva.

No Brasil, os casos de raiva são esporádicos. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2010 a 2017, foram registrados 25 casos de raiva humana. Em 2014, não houve registros. Dos 25 casos, nove foram transmitidos por cães, oito por morcegos, quatro por primatas não humanos, três por felinos e, em um deles, não foi possível identificar o animal agressor. Quanto às mortes mundiais por raiva humana, especialistas da área acreditam que o número deve ultrapassar as 60 mil mortes anuais, devido à subnotificação.

Mais informações: e-mail wca@usp.br, com Washington Carlos Agostinho, e paulo7926@usp.br, com o professor Paulo Eduardo Brandão.


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