“Os médicos disseram aos meus familiares que se não conseguisse um doador, eu poderia não ter resistido”, relembra Leidiane Moretti de Carvalho, que passou por um transplante de fígado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) há um mês. Ela é uma das 522 pacientes que passaram pelo procedimento na instituição, que comemora 20 anos da realização do primeiro transplante de fígado.
Tudo começou com estudos e com a criação de uma equipe multiprofissional capacitada e credenciada para receber o primeiro paciente em 1999. “É um procedimento altamente complexo, pois, além da cirurgia, tem o ponto de vista logístico, que para ser bem feito precisa da integração com outros vários serviços do hospital, tudo com rigor de gerenciamento dentro da política das instituições”, conta o professor Orlando de Castro e Silva Junior, da FMRP.
Após realizar aperfeiçoamentos em instituições do País e do exterior, a equipe multiprofissional composta de 40 profissionais da Unidade de Transplante de Fígado da instituição estava pronta para o primeiro procedimento, no dia 1º de maio de 2001, que começou às 18 horas, com a cirurgia do doador. O marco é histórico e consagrou a região como referência no tratamento de hepatopatias.
A realização era tão importante para o HCFMRP que até a quebra do ar-condicionado do centro cirúrgico foi resolvida na madrugada, pois o procedimento começou às 2 horas da manhã no dia seguinte à cirurgia do doador. “Eu nunca vi algo desse tipo acontecer em 40 anos de docência. Com o esforço de toda a equipe, o transplante correu como planejado e o paciente de 48 anos teve uma ótima recuperação”, completa o professor.

Mudanças clínicas, cirúrgicas e estruturais na realização do transplante de fígado marcaram essas duas décadas, como aumento do número de profissionais e o tempo do procedimento, que era entre 10 e 12 horas e foi reduzido para aproximadamente sete horas. “As mudanças, tanto clínicas como cirúrgicas, foram frutos da experiência adquirida e da experiência de outras equipes observadas através de visitas, discussões e trocas de ideias com outros centros transplantadores”, conta o professor Ajith Kumar Sankarankutty, da FMRP.
Recusa familiar
O transplante de fígado, que é feito na maioria dos casos graças a um doador falecido, pode ser necessário para pacientes em situação de dano causado por cirrose hepática, em decorrência das hepatites B e C e consumo excessivo de álcool, e hepatite medicamentosa.
Apesar do aumento da conscientização sobre os transplantes ter gerado crescimento no número de doadores efetivos, dados do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT) apontam que a recusa familiar ainda é de mais de 40%. Para os professores Silva Junior e Sankarankutty, é importante que a população comunique a família sobre o desejo de ser doador, para que a decisão se torne mais fácil no momento de luto.
Com a pandemia de covid-19, transplantes que não têm tratamento substitutivo, como coração e fígado, continuaram com ajustes de protocolo de segurança. “A pandemia causou uma redução importante nas doações e, consequentemente, nos transplantes, afetando o procedimento em todos os órgãos. Se compararmos com o primeiro trimestre de 2019, a redução de transplantes foi de 33% no País inteiro”, finaliza o professor Sankarankutty.