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Diferentemente do modelo tradicional de ensino brasileiro, marcado pela transmissão de informações pelo professor através de aulas expositivas, através da memorização e repetição de conteúdos, a educação do campo surge como uma prática educativa emergente das demandas e lutas dos povos do campo. Esse modelo educacional leva em consideração os movimentos sociais ligados à terra e tem como pilares a valorização de saberes locais e a articulação desses saberes com processos produtivos e culturais, além do compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e sustentável.
De acordo com o educador do campo, professor Danilo Seithi Kato, do Departamento de Educação, Informação e Comunicação (Dedic) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, a educação do campo é um modelo educativo que “rompe com a subalternização histórica da população do campo, afirmando seu direito à educação como parte de um projeto coletivo de emancipação e transformação social”. A população do campo mencionada pelo professor é plural e abrange quilombolas, ribeirinhos, indígenas e camponeses, que representam a diversidade territorial brasileira.
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No âmbito das transformações sociais, Kato diz que “a educação tem que ser vista como uma prática que contribua para a emancipação social e que esteja ligada à luta pela terra, pela reforma agrária, pela dignidade humana e pela construção de um projeto de sociedade que integre a justiça social e a sustentabilidade ambiental”. Além disso, a educação do campo busca incorporar as especificidades da vida dos alunos, integrando a cultura local e práticas econômicas ao currículo dos alunos, ao mesmo tempo em que proporciona a educação formal.
Porém, para que a educação do campo possa prosperar, são necessárias políticas públicas, que não são uma realidade no Brasil. Segundo Kato, “existe um certo descaso por parte do Estado no que concerne às premissas da educação do campo. É importante que as escolas do campo tenham currículos, professores e práticas voltadas àquilo que foi constituído na educação do campo com a participação dos movimentos sociais e dos sujeitos do campo”. O educador ainda afirma o direito “de uma educação a partir da realidade e do contexto desses sujeitos, e não currículos homogêneos e práticas urbanocêntricas”.
Modelo educacional
Como parte do currículo que busca a emancipação da população do campo, o professor Kato menciona a pedagogia de alternância, um método de ensino que articula o conhecimento prático, o conhecimento científico, as identidades dos estudantes, suas territorialidades e o pluralismo cultural. “A pedagogia de alternância consiste em um tempo em que os alunos vivenciam o semestre letivo e o tempo em comunidade, em que os docentes se deslocam até os territórios para atender à continuidade do semestre letivo.”
A pedagogia de alternância surgiu na França, na década de 1930, a partir da necessidade de introduzir os saberes da agricultura em escolas a partir da iniciativa da igreja católica junto a agricultores, fortalecendo as atividades do meio rural. A primeira experiência da pedagogia de alternância no Brasil aconteceu em 1968, no Espírito Santo, a partir da implantação dos Centros Familiares de Formação por Alternância, com a atuação da igreja católica e de um padre jesuíta italiano, que visava ao desenvolvimento religioso, cultural, econômico e social do Espírito Santo.
Para Kato, a pedagogia de alternância “é uma tecnologia importante, inclusive para pensarmos os modelos formais de educação urbanos. A partir dela, nós temos resultados fantásticos nos aspectos de formação, ensino, aprendizagem, discussões socioambientais e educação científica”. O professor ainda afirma que esse modelo educacional “precisa ser tratado com mais cuidado. É algo que poderia ser colocado em pauta como um modelo que promove inclusão, sentimento de pertencimento e fortalecimento das identidades camponesas a partir de um modelo que respeita a realidade dos sujeitos do campo”.
Efeitos do agronegócio
Além da falta de políticas públicas eficientes para a manutenção da educação do campo, outro fator que contribui para a falta de incentivos para essa forma de ensino é o agronegócio, que promove a desterritorialização da população do campo. “Hoje, com a chegada do agronegócio, o que se tem é a desterritorialização do sujeito do campo”, afirma Kato. O êxodo provocado pelo agronegócio provoca uma erosão cultural e uma homogeneização dessa população, “além da redução da biodiversidade, impactos nas mudanças climáticas e injustiças socioambientais”.
O êxodo rural mencionado por Kato reflete na redução de matrículas nas escolas localizadas nas zonas rurais, o que leva ao fechamento das escolas do campo. Segundo dados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 21 anos, entre 1997 e 2018, foram fechadas quase 80 mil escolas do campo no Brasil, o que significa, em média, 4 mil fechamentos por ano.
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Para a professora Claudia Souza Passador, especialista em Gestão e Políticas Públicas da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP e coordenadora do grupo Escolas e Território da Cátedra de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, o fechamento de 4 mil escolas por ano “é fruto de um equívoco no Brasil, de uma política pública que acredita que comprar ônibus escolares e enviar os alunos do campo para as cidades poderia substituir as escolas do campo”.
No entanto, segundo Kato, o fechamento de escolas é superior à diminuição das matrículas, o que fere aspectos legais. “A Lei 12.960 de 2014 exige uma consulta prévia às comunidades antes do fechamento das escolas do campo, indígenas e quilombolas, e isso não tem ocorrido, e é um problema muito grave acreditar que não há demanda para escolas do campo e que por isso elas devem ser fechadas.”
Esse fechamento das escolas do campo promove uma política de criação de escolas anexas, escolas localizadas na zona urbana, que passam a atender ao público que vive na zona rural da cidade e que se configuram como escolas anexas a escolas já preexistentes. “Isso diminui o custo do Estado com relação a essa população específica, mas, por outro lado, dificulta o acesso”, diz Kato. “Temos registros de transporte escolar dessas crianças em condições precárias. Elas ficam horas dentro desses meios de transporte, sem a infraestrutura adequada, o que leva a um grande índice de evasão escolar por conta da dificuldade de acesso.”
Além disso, para Claudia, esse fechamento é um “retrocesso nas políticas públicas da educação do campo nos últimos seis anos. No início do governo Bolsonaro, uma das primeiras medidas feitas foi a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), porque o governo não a reconhecia como uma parte importante da sociedade brasileira”. A professora ainda explica que a extinção da Secretaria “significou legitimar o fechamento dessas escolas”.
*Estagiária sob supervisão de Gabriel Soares
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