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A atuação da Polícia Federal brasileira na prisão de políticos e grandes empresários tornou-se tema constante na imprensa nas últimas duas décadas. Mas, para chegar a essa posição de destaque, o órgão fundado em 1944 passou por uma série de transformações internas, principalmente a partir da década de 1990. Entre as razões, as principais foram uma mudança de foco das investigações — do tráfico de drogas para os crimes financeiros —, o amadurecimento das relações da PF com outros órgãos e poderes brasileiros, como o Ministério Público e o Judiciário, e a adoção de novas tecnologias que agilizaram o processo de trabalho.
“Quando eu entrei para a Polícia, em 1995, o foco total estava no combate ao tráfico de drogas. Era a maior unidade, a mais rica e cobiçada. Mas nós fomos uma geração de policiais pós-Constituição de 1988. A partir dela, houve o início da edição de algumas leis com priorização do combate a crimes financeiros”, explicou Rogério Galloro, ex-diretor da PF, que ocupou o cargo em 2018. “E nós estávamos inseridos nesse contexto, com um outro olhar. Percebemos que havia de fato um prejuízo muito maior para a União com esses desvios do que com o tráfico de drogas. Essa mudança de foco foi vital.”
Galloro participou do seminário Corrupção e Crime Organizado a partir da Experiência da Polícia Federal, realizado no dia 20 de maio no IEA. Além dele, estavam os também ex-diretores Luiz Fernando Corrêa (2007-2011) e Leandro Daiello (2011-2017). O evento foi organizado pelo cientista político Rogério Bastos Arantes, que desenvolve no IEA o projeto Corrupção Política e Crime Organizado no Brasil, como participante do Programa Ano Sabático. Participaram ainda, como debatedores, Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e a cientista política Lígia Mori Madeira, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Além do avanço interno como instituição, houve também o amadurecimento das relações externas e de trabalhos conjuntos. “Quando superamos a dificuldade de fazer parcerias entre delegacias e unidades, veio um segundo momento, o de trabalhar com parcerias externas”, explicou Leandro Daiello. “Por que um policial vai perder seis meses fazendo um relatório que a Controladoria Geral da União já tem ou faz em um mês? Por que eu vou especializar o policial em questões ambientais se o Ibama já tem esse especialista?”, indagou.
É nesse cenário que entra o conceito de força-tarefa, diz Daiello. “A força-tarefa não é um grupo de pessoas fazendo tudo. É cada um fazendo o que é de sua atribuição em um espaço definido. A polícia faz sua parte; a receita faz a parte fiscal; o Ibama, a ambiental. Mas isso delimitado em um espaço em que a atividade fica mais ágil e os envolvidos conversam mais. Isso traz melhores resultados.”
Luiz Fernando Corrêa destacou que sua chegada na direção-geral coincidiu com essa maturidade nas relações externas. “Já havia um entrosamento pleno, sem nenhuma desconfiança, entre a Polícia, a Justiça e o Ministério Público.”
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Tecnologia
A adoção de novas tecnologias a partir da década de 1990, impulsionadas por uma nova geração qualificada e preparada para usá-las, também mudou o patamar da organização, acreditam os ex-diretores.
Na década de 1980, lembrou Luiz Fernando Corrêa, para analisar a rotina de um investigado se levava 15 ou 30 dias de vigilância presencial, muitas vezes dia e noite. Hoje, um sistema que tenha acesso ao celular do suspeito pode levantar essa informação sem que o policial precise sair do escritório.
“Antigamente, a investigação era muito simplória. As fontes de informação eram essencialmente humanas, ou seja, o que recebíamos de informantes”, disse Corrêa. “Começa a acontecer uma evolução. A escuta telefônica, por exemplo, foi um marco. Nos deu a instantaneidade na investigação.”
Em 1995, afirmou Galloro, mal havia computadores e celulares para uso dos policiais. “Houve, então, uma avalanche tecnológica. E ao mesmo tempo, as atribuições da Polícia cresceram muito, enquanto o efetivo policial não crescia na mesma proporção. Então, realmente precisávamos da tecnologia para dar conta.”
Galloro lembrou que a Polícia Federal passou dez anos sem realizar concursos para novas vagas de delegados até abrir o que seria o da futura turma de 1995. “É um acontecimento negativo, claro, mas de uma certa maneira foi positivo para a organização, porque nos fez nos distanciar da geração passada”, explica. “Não que ela tenha sido uma geração ruim, não é isso. Mas com a nova geração, houve a necessidade de uma transformação radical. E aí, vem uma nova polícia.”
Combate ao crime
Tantos avanços trouxeram um combate mais efetivo contra o crime, garantiram os ex-diretores. “O Luiz Fernando Corrêa trouxe para a direção geral uma novidade, que eu participei como executor, em relação ao enfrentamento do crime”, explicou seu sucessor, Leandro Daiello. “Foi a modernização das operações e o aumento do foco em cada uma. Dessa maneira, há menos prisões, mas um número maior de provas.”
Para Rogério Galloro, esse processo da gestão Corrêa “foi de fato a reorganização e profissionalização da Polícia Federal. Se não fosse isso, ela não estaria na posição que está hoje.”
O combate ao crime organizado, entretanto, carrega sérios desafios. “Ao herdar do Corrêa essa polícia ágil, operacional e organizada, eu percebi que para combater o crime organizado nós não podíamos simplesmente tomar um passo operacional, de enfrentamento direto com as organizações criminosas”, disse Daiello. “Precisaríamos, sim, enfrentar a infiltração desses grupos no Estado. Não seria possível combater o crime lá fora enquanto dentro do Estado ele estava cada vez mais forte.”
“A polícia não vai resolver sozinha a questão da segurança pública”, continuou Daiello. “A resolução desse problema vai um pouco além de apenas fazer investigações e efetuar prisões.” Para ele, a Polícia Federal, durante o processo de enfrentamento da corrupção, fez sua parte, que foi além das prisões e apreensões de dinheiro e bens. “Ela fez uma coisa mais importante: deu transparência. Hoje, todo mundo sabe como as coisas funcionam e o que está acontecendo no País. Mas há os próximos passos. E eu vejo grande parte da solução na política. A atuação do mundo político é estratégica para a segurança pública do País.”
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Autonomia
Rogério Galloro alertou para a necessidade de a Polícia Federal ter autonomia na gestão de seus recursos. “Estamos em um momento de transformação e desafios. O crime organizado está crescendo. A polícia precisa ter autonomia financeira e orçamentária”, defendeu. Essa autonomia, garante, não significa necessariamente um aumento do repasse de recursos para a organização, mas sim a sugestão de um montante, com as justificativas de sua necessidade e a sua gestão com responsabilidade.
“A PF não quer um cheque em branco”, disse Luiz Fernando Corrêa. “Essa autonomia orçamentária não quer dizer que ela vai pedir um valor e simplesmente ganhar. Não, ela vai pleitear, justificar, discutir e se responsabilizar pela execução. É um orçamento dentro das metas pensadas para o ano. E, no final, os órgãos de controle iriam auferir se a execução orçamentária seguiu o combinado”.
De qualquer maneira, o dinamismo e as renovações na maneira de agir da organização devem seguir como norma. “A polícia está na ponta do combate ao crime. Por isso, ela é a primeira a ver as mudanças”, garantiu Leandro Daiello. “A receita desse combate é dinâmica. Hoje, o enfrentamento ao tráfico é diferente da maneira que era na década de 1980. E daqui a um tempo, será diferente de como é hoje também.”
Para enfrentar o crime organizado que existe hoje no País, alertou Daiello, os trabalhos de enfrentamento à corrupção são estratégicos e devem continuar. “Mas sempre precisamos lembrar nesse assunto que a corrupção não é um problema brasileiro. Ela é um problema mundial, de todos. É claro que no Brasil a gente percebe que ela chegou a um ponto de infiltração do Estado um pouco exagerado. Mas os brasileiros não devem sentir como se ela fosse um ‘privilégio’ nosso”.
Texto: Nelson Niero Neto / Instituto de Estudos Avançados da USP