O genocídio cometido contra a população yazidi em 2014 causou sequelas que se mantêm até hoje. Vítimas de um ataque do grupo fundamentalista Estado Islâmico, responsável por milhares de mortes, eles foram obrigados a fugir, o que gerou um intenso processo de deslocamento de refugiados. Aqueles que não conseguiram escapar foram sequestrados ou mortos.
Os yazidis são um povo do Oriente Médio que ocupa áreas principalmente no norte do Iraque e também na Síria. De acordo com Augusto Leão, integrante do Grupo de Estudo sobre Distribuição Espacial da População da PUC Minas e do Laboratório de Estudos Asiáticos (LEA) da USP, uma das características desse grupo é a religião, composta de elementos de diversas crenças. “Eles têm essa especificidade de cultuar uma religião que, na verdade, é uma síntese de alguns elementos islâmicos, alguns elementos cristãos e também alguns elementos judaicos e pagãos.”
A religiosidade é uma das justificativas dadas pelo Estado Islâmico para perseguir essa etnia. Leão comenta que o nome dado ao grupo também pode ter relação com os ataques. “O nome que a gente utiliza para nomear esse grupo, que é ‘yazidi’, está relacionado com a palavra persa para ‘anjo’. Eles se denominam como ‘dasinî’”, diz. “ A palavra parece muito com a palavra que os árabes utilizam para denominar o diabo, então há uma captura dessa desculpa para aumentar essa pecha do grupo, de que eles são cultuadores de satanás”, acrescenta.
Além da expansão territorial, o Estado Islâmico busca justamente acabar com essa cultura, considerada a encarnação do mal. Igor Sabino, também integrante do LEA, comenta que não existe a possibilidade de conversão na religião yazidi. Por isso, quando acontecem esses ataques, a intenção é impedir a manutenção desses costumes. “Quando você mata essas pessoas, você impede elas de viverem no seu local, de passar esses costumes para as próximas gerações, casar entre si e manter esses laços. Foi exatamente isso que o Estado Islâmico atacou.”
Os assassinatos e sequestros são uma prática comum do grupo fundamentalista, que atinge todos os povos da região. Segundo Leão, ao serem sequestrados, os jovens são transformados em combatentes e utilizados como soldados nas batalhas travadas pelo Estado Islâmico, em que muitas vezes acabam morrendo. As mulheres são escravizadas, leiloadas entre os integrantes do grupo e estupradas.
As mulheres yazidis
Muitas dessas mulheres sequestradas e estupradas tiveram filhos dos abusadores. Agora, após conseguirem se libertar do grupo, elas passam por um novo drama, pois são obrigadas a escolher entre viver com seus filhos em campos de refugiados ou abandoná-los e voltar para sua comunidade, onde eles não são bem-vindos.
De acordo com Sabino, na ótica das tradições yazidis, essas crianças são consideradas muçulmanas, por isso, não são aceitas. Há ainda uma espécie de vínculo entre a criança e seu pai, um combatente do Estado Islâmico responsável pela morte de diversas pessoas. “Como os pais dessas crianças são muçulmanos, elas não fariam parte dessa comunidade. É por isso que essas mulheres acabam não podendo retornar com seus filhos, porque elas são vistas como yazidis, mas os filhos não.” O pesquisador também comenta que o estigma do estupro e a culpa que essas mulheres são obrigadas a carregar fazem com que muitas delas se suicidem.
Apesar da violência, as relações de gênero têm sido modificadas durante a resistência aos ataques. Esse é um dos temas que serão tratados no livro Para Começar a Entender o Estado Islâmico, que será lançado no segundo semestre de 2021 e tem o envolvimento de Leão e Sabino. O livro foi organizado com base nas discussões do Grupo de Trabalho Oriente Médio e Mundo Muçulmano da USP.
Leão pontua a atuação das mulheres curdas nas frentes de combate. “Isso vai ter um impacto gigantesco na reorganização política”, afirma. “Houve um ataque muito importante do Estado Islâmico ao papel da mulher e às relações de gênero, e há uma chance de os grupos locais reorganizarem essa questão, inclusive sem largar as bases religiosas”, completa.
De acordo com Sabino, a comunidade internacional não tem se mobilizado tanto e reconhecido a importância da causa das mulheres, se contentando somente com a derrota militar dos fundamentalistas. “Inúmeros crimes contra a humanidade foram cometidos, a gente vê a tentativa de genocídio e o estupro como arma de guerra. São crimes que permanecem sem ser investigados, os culpados não têm sido punidos”, diz. “A gente tem que ter noção que mulheres permanecem desaparecidas e as que sobreviveram têm dificuldades para ser inseridas em suas comunidades, então o processo está longe de ter acabado”, finaliza.
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