Novo boom imobiliário na cidade de São Paulo apaga uma camada histórica importante

A grande verticalização em regiões nobres da cidade também encarece os preços de aluguel e expulsa antigos moradores para bairros mais afastados

Foto: Deni Williams/Flickr

 01/08/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 14/06/2024 às 16:05

Texto: Ana Paula Medeiros

Arte: Adrielly Kilryann

A gente começou a perceber o movimento das casas em volta a serem vendidas e começamos a cobrar uma posição da administradora da casa em relação a isso, porque a gente imaginou que se as outras casas estavam sendo vendidas, era questão de tempo para a nossa também ser vendida. Mas o pessoal que administrava a casa garantiu que isso não iria acontecer e que eles manteriam o contrato até fevereiro de 2023. Até que, faltando 40 dias para ela [administradora] entregar a casa, ela enviou uma mensagem pedindo para a gente sair, explicando que a casa havia sido vendida e que tínhamos esse tempo para nos mudar.”

Esse é um depoimento particular de Jade Conde, 18, mas muitos cidadãos paulistanos podem se identificar com ele. Desde 2019, São Paulo vive um novo boom imobiliário e, enquanto vilas de casas geminadas caem terra abaixo, mais empreendimentos imobiliários de alto padrão se erguem pela cidade. É a região da subprefeitura do bairro nobre de Pinheiros que concentra o maior número de alvarás de demolição nos últimos dois anos, segundo dados da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento. Só em 2021, dos 602 alvarás emitidos na capital paulista, aproximadamente 133 se concentraram nesta região.

Beatriz Rufino, do Departamento de Projeto na área de Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, comenta sobre o Plano Diretor Estratégico de 2014. De acordo com ela, o substancial aumento da produção imobiliária na cidade passou a ser desenvolvido para segmentos antes não tão explorados: “Por um lado, a gente tem uma produção muito grande e uma intensificação da produção na região metropolitana de São Paulo e, por outro lado, a gente viu uma verticalização muito grande nos miolos das áreas valorizadas, com um processo de valorização imobiliária de certa forma até então inédita”.

Beatriz Rufino - Foto: Reprodução/ResearchGate

Beatriz Rufino - Foto: Reprodução/ResearchGate

As controvérsias do Plano Diretor Estratégico

Enquanto o Plano Diretor tinha a proposta de incidir no desbalanceamento das necessidades da capital e resolver suas assimetrias, ele, ao mesmo tempo, tem incidência na série de demolições que estão ocorrendo em São Paulo. Segundo Beatriz, há nos eixos a criação de áreas onde se estimula o adensamento construtivo e, portanto, se tornam áreas de interesse das grandes empresas por permitir maior número de construções. “A ideia era que fossem produzidos  apartamentos menores, de até 60 metros quadrados, mas no final ficou em 80 metros quadrados. Criou-se uma verdadeira corrida para essas áreas, tanto é que uma das primeiras repercussões foi também o aumento do preço da terra”, informa.  

A multiplicação de novos imóveis mobiliza a população contra o que enxergam como um descumprimento das diretrizes do Plano. Se um movimento pró-verticalização argumenta que lutar contra a construção desses imóveis desenha a malha urbana horizontalmente e expulsa a população mais pobre para as periferias, quem pensa o contrário vê que viver perto de eixos de transporte público, restaurantes e parques vira privilégio de quem consegue acompanhar a especulação imobiliária. 

A realidade é que essa verticalização é pensada para pessoas de alta renda, as quais podem pagar os caros preços de aluguel de apartamentos grandes e condomínios que possuem muita vaga de garagem e poucos moradores, um tipo de projeto que contraria a demanda real da população paulistana.

Esse descasamento é um reforço do imobiliário se constituindo como uma promessa de investimento ou uma promessa de ganho para seus investidores num total desalinhamento, porque é dentro do momento em que a gente vê um empobrecimento muito grande da população e, no caso de São Paulo, um aumento muito expressivo dos moradores de rua”, enxerga a arquiteta.

Verticalização para as regiões nobres

Além de Pinheiros, outros bairros muito afetados pelas demolições são Vila Mariana, Mooca, Santo Amaro e Lapa, regiões também nobres da cidade. “Eu vim morar em São Paulo porque sou do interior da Bahia e vim fazer cursinho pré-vestibular para buscar uma educação melhor numa faculdade pública que seja nomeada”, conta Jade. Ela morava em uma república na Vila Mariana, segundo ela, um ponto estratégico para acessar todos os bairros da cidade e ainda próximo ao seu curso: “Tudo bem próximo de casa, ficava mais fácil para não precisar me deslocar tanto tempo para ir atrás dessas coisas que são básicas”.

Jade Conde - Foto: Reprodução/Facebook

Jade Conde - Foto: Reprodução/Facebook

Para Jade Conde, o bairro atendia às suas necessidades e ela se imaginava morando lá por mais tempo, devido à facilidade de vida que ele trazia. Mas quando soube que a casa onde ela e mais um grupo diverso de pessoas morava seria vendida, já sofria com consequências das demolições de outras casas ao entornoA casa já estava sendo deixada de lado e as obras ao redor [de demolição] estavam causando muita sujeira, muito barulho. A parede do meu quarto começou a rachar pelo uso de ferramentas brutas no solo”, relata.  

De acordo com a professora Beatriz Rufino, a produção focada nessas regiões cria mais fronteiras internas em uma cidade que já é desigual: “Áreas como a Zona Sul, Vila Mariana, já tinham uma grande produção, mas não tinham produção no entorno dos eixos de mobilidade. Há um deslocamento do setor imobiliário para essas áreas da mesma forma que ocorre em Pinheiros. São áreas já historicamente valorizadas e ocupadas por uma produção imobiliária de mais alta renda”.

O apagamento de uma história

Para Beatriz, a destruição de pequenas casas e vilas para a construção de torres nessas áreas representa um apagamento de uma camada histórica importante de São Paulo, revelando um processo de urbanização acelerado e a relevância que as dinâmicas imobiliárias sempre tiveram na economia: “A gente teve em menos de um século a transferência e a consolidação de três centralidades principais diferentes. A gente viu o deslocamento dos interesses econômicos muito motivados por deslocamentos dos interesses da produção imobiliária do Centro para a Paulista e posteriormente para a região da Faria Lima, dando continuidade nesse processo e destruindo essas camadas de história importante”. 

“Essa renovação e produção imobiliária em algumas áreas da cidade reforçam o processo histórico que parecia estar em reversão no centro, que é um esquecimento e um esvaziamento das edificações. Isso ficou muito marcado em alguns episódios recentes por incêndios nos prédios, revelando um certo desinteresse e descuido na preservação desses prédios”, ressalta.  

Beatriz comenta, também, sobre a brutal redução das taxas de juros entre 2017 e 2018, a qual impactou o mercado imobiliário, se colocando como um porto seguro para investimentos financeiros. Os eixos não marcam apenas um produto novo e mais adensado do ponto de vista físico, mas, também, um novo produto alinhado com o interesse de investidores: “Esses produtos são chamados muitas vezes de Long Stay e vão para além do que a gente já discutia da ideia do airbnb. Se estruturam prédios que são feitos totalmente por investidores e já marcam a consolidação dessas áreas como espaços privilegiados, ampliando a possibilidade do imobiliário diretamente como um investimento financeiro mais sofisticado do que já se tinha em torres corporativas, sobretudo, concentrado na região da Faria Lima”.

Muita produção, pouca ocupação

A especialista ainda analisa que São Paulo está produzindo excessivamente empreendimentos, de forma que alguns ficarão vazios, já que ou serão para investimentos ou serão ocupados de forma intermitente, devido ao déficit habitacional provocado pelo ônus excessivo de aluguel.  

O processo fica contraditório porque, por um lado, há uma renovação na cidade e, por outro, a abertura de novas rodadas de precariedade na urbanização. Conforme comenta Beatriz, o principal problema da capital paulista hoje é o encarecimento do acesso ao aluguel. 

“Todo mundo acabou indo para [uma residência de] aluguel mais caro. Ficou mais apertado financeiramente, porque o aluguel que a gente pagava era um valor que hoje, pela localização que ele oferecia, a gente não acha em nenhum outro lugar”, diz Jade. A jovem encontrou dificuldades para achar outra casa para morar e, quando achou, percebeu que a nova residência não se compara à antiga em termos de localização e preço de aluguel. Agora ela mora em uma região do Butantã distante do Metrô e, devido a isso, leva o dobro de tempo para chegar ao seu curso.   

Muitas pessoas com quem Jade convivia já estavam bem adaptadas à casa e, ao precisarem se mudar para mais longe, perderam qualidade de vida:

Quando eu me mudei de lá, ainda tinha pessoas que não faziam ideia de para onde iriam. Não é fácil ter uma mudança assim. A gente constrói uma vida baseada naquele endereço, naquela localização, e ter que mudar tudo de repente é bem, bem difícil”.


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