Ministério dos Direitos Humanos estabelece metas para o combate à tortura no sistema prisional

De acordo com a professora Maria Gorete Marques de Jesus, a decisão de reativação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura veio depois de um desmonte do órgão no último governo

 26/07/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Raquel Tiemi (estagiária)*
Arte: Carolina Borin (estagiária) **

Um dos problemas é que existe uma mentalidade permissiva do ataque à população carcerária - Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT) foi reativado em reunião organizada pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania na última semana de junho, em Brasília. O ministro Silvio de Almeida justificou que a superlotação do sistema prisional, práticas de tortura física e psicológica de presos, fome e até mesmo a morte de detentos e menores apreendidos são algumas das violações de direitos humanos analisadas nas prisões brasileiras.  

As principais metas estabelecidas pelo ministro foram: discussão de metodologia para os protocolos e formulários de inspeção em instituições prisionais; redução da população prisional — como a partir da substituição de penas graves por mais brandas; incentivo à realização de mutirões multiprofissionais; elaboração de levantamentos da população em situação de privação de liberdade; e diagnóstico dos dados.

Importância

Em 2019, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro decretou a exoneração dos 11 peritos responsáveis pelas fiscalizações feitas pelo SNPCT e estabeleceu que novos profissionais poderiam ser aprovados se não participassem de segmentos civis, como universidades, e não fossem remunerados. Maria Gorete Marques de Jesus, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, especialista em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP e ex-participante do comitê do órgão público, explica que a rearticulação desse órgão é de grande importância após o desmonte e demonstra até mesmo ignorância do governo anterior diante desse problema. 

De acordo com a pesquisadora, o sistema apresenta uma grande diversidade de agentes, mas os protagonistas no nível nacional são o Comitê e o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura do órgão. O primeiro se responsabiliza por pensar na política de forma mais ampla, como nos requisitos e escolha dos peritos que realizam o trabalho de fiscalização. Além disso, os membros do comitê são representantes dos órgãos tanto do poder público quanto da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Federal de Psicologia, universidades, entre outros. Assim, esse agente, em conjunto, é responsável por pensar em uma política de combate e prevenção à tortura.
Maria Gorete Marques de Jesus - Foto: Maurício Garcia/ALESP

Maria Gorete Marques de Jesus - Foto: Maurício Garcia/ALESP

Para além da recomendação específica, a pesquisadora comenta que também há o dimensionamento de políticas para a região, Estado ou até mesmo em nível nacional. “As unidades de privação de liberdade são ambientes fechados. Então, não há muita transparência sobre como as pessoas ali nessas unidades são tratadas”, ressalta Maria Gorete sobre o papel fundamental do SNPCT para a fiscalização e combate das violações de direitos humanos, principalmente dentro dos presídios. Apesar da centralidade nos casos dos complexos penitenciários, o sistema também age na violação dos direitos humanos em hospitais psiquiátricos, asilos, dentre outros espaços.

Desafios

Mesmo com a rearticulação do órgão para o enfrentamento dessa prática ilegal, a especialista atenta para diversos desafios no contexto brasileiro, como o processo desde a denúncia até a responsabilização do torturador. Maria Gorete explica que a vítima se vê muitas vezes desamparada ao realizar a denúncia e, mesmo quando o faz, há uma série de complicações na investigação dos casos. “A gente tem uma dificuldade na apuração da denúncia e na comprovação da lesão. Então, a perícia está muito despreparada para lidar com esse tipo de violação”, discorre. 

Maria Gorete também traz luz ao protagonismo das ações de responsabilização individual do autor do crime sem obter um panorama mais amplo das estruturas onde esses crimes são recorrentes. A questão do crime de omissão também é negligenciada, uma vez que, apesar de existir uma lei, segundo a pesquisadora, não há qualquer tipo de culpabilização daqueles que permitem ou se omitem diante das violações. 

Outro desafio apontado pela pesquisadora é o próprio julgamento da sociedade diante do assunto, uma vez que ainda existe uma mentalidade permissiva acerca do ataque à população carcerária. “A gente tem programas de televisão que instigam e mostram constantemente cenas de violência urbana com apresentadores que defendem uma narrativa extremamente punitivista e contra os direitos básicos dessa população”, explica. Assim, em sua visão, a mídia sensacionalista age diretamente na construção dessa opinião pública que, não apenas apoia uma suposta luta contra o crime, como também legitima o uso da violência. 

“Existe uma legislação bastante consistente direcionada à prática de tortura, no entanto, eu acredito que ainda há pouca visibilidade ou nenhum tipo de política voltada às vítimas”, pondera a pesquisadora. Nesse sentido, há necessidade de cuidado após todo o processo judicial para a responsabilização, ou seja, de políticas de apoio psicológico e psiquiátrico para as vítimas se fazem essenciais.

Herança histórica

Pedro Dallari, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e membro da Comissão dos Direitos Humanos da Universidade relaciona o período ditatorial do Brasil com a perpetuação das práticas de tortura. Nas recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade em 2013, da qual foi participante, menciona-se a necessidade de “criação de comitês para prevenção e combate à tortura em todos os Estados da Federação”, conforme previsto na Lei 12.847/2013, que deu origem ao SNPCT. 

“Por ter se tornado uma prática habitual por parte de agentes da polícia e das Forças Armadas na época da ditadura militar e o fato de que os torturadores não tenham sido processados, julgados e condenados contribuiu para a perpetuação das práticas de tortura”, analisa Dallari. 

Pedro Dallari – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Outro traço que se revela típico do quadro histórico brasileiro, de acordo com a professora Maria Gorete, é o perfil das principais vítimas desses crimes: o jovem negro periférico. “Principalmente essa violência do Estado não é concebida como uma violência, essa população sofre por parte das organizações do Estado uma violência que é vista como legítima.”

*Sob a orientação de Marcia Avanza

**Sob a orientação de Moisés Dorado


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