Impossibilidade de ritos funerários na pandemia pode afetar saúde mental dos enlutados

A psicóloga Érika Arantes de Oliveira Cardoso diz que o luto mal elaborado é o não vivenciado, que pode levar ao adoecimento físico, e afirma ser importante que cada pessoa viva a dor da perda em seu tempo

 04/05/2021 - Publicado há 4 anos
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A pandemia da covid-19 provocou mudanças na realização de funerais e sepultamentos, reduzindo o tempo e o espaço para o amparo emocional – Foto: Kat Northern/Flickr-CC

 

A cerimônia de despedida de um ente querido é parte importante para a elaboração do luto, já que é o momento para homenagear, dar adeus à pessoa amada e apoiar o enlutado e “a concretizar a ideia da perda de quem se foi”, diz a psicóloga Érika Arantes de Oliveira Cardoso, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP

No entanto, a pandemia da covid-19 provocou mudanças na realização de funerais e sepultamentos, reduzindo o tempo e o espaço para o amparo emocional. Necessárias para a segurança de todos, as novas regras do ritual no Estado de São Paulo potencializam o sofrimento e a dor da perda, afirma a psicóloga.

Pelos riscos de contaminação, as recomendações da cartilha do Centro de Vigilância Sanitária paulista não recomendam velórios em casos de mortes suspeitas ou confirmadas pelo novo coronavírus. Se realizados, devem ficar restritos ao “menor número possível de pessoas”, com preferência para os familiares mais próximos, e seguir “as recomendações dos municípios”. Embora os velórios sejam permitidos para óbitos não relacionados à covid-19, estão mantidas as orientações contra aglomerações e pelo distanciamento mínimo de 2 metros entre as pessoas, além de observadas “outras medidas de isolamento social e de etiqueta respiratória”. Para os sepultamentos, é orientada a presença máxima de dez pessoas, “não pelo risco biológico do corpo, mas sim pela contraindicação de aglomerações”.

Luto mal elaborado

Luto – Foto: Visualhunt

A estudante de terapia ocupacional Amanda Aparecida Jussiani Alves Santos, de 22 anos, não pôde se despedir de seu avô materno, que morreu vítima da covid-19 em julho do ano passado. Amanda conta que já não via o avô devido ao isolamento social e que a distância entre eles se intensificou quando, em uma quarta-feira, ele precisou ser internado na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Ribeirão Preto com suspeita de infecção pelo novo coronavírus.

Com a confirmação da doença, Amanda e sua família só recebiam notícias do avô por boletins on-line e ligações da equipe médica, plantonistas, psicóloga e assistente social que o acompanhavam. Esse foi um período, segundo a estudante, em que o quadro clínico do avô oscilava entre a estabilização e a piora, mas que o desfecho se deu rapidamente, após a transferência para a Unidade de Terapia Intensiva.

A família de Amanda sabia da impossibilidade do velório, mas acreditava que pudesse ao menos vê-lo antes do sepultamento. Assim, a estudante conta que ela e sua mãe separaram peças de roupas para o momento, até que veio a notícia, dada pela psicóloga, da impossibilidade de ver o avô ou realizar o “ritual da roupa”. Segundo Amanda, o corpo de seu avô “seria colocado em um saco” e “iria direto para o enterro”, que se realizaria “em uma hora e meia”.

Amanda descreveu as circunstâncias como “algo desumano”, que dificultou ainda mais o entendimento da morte. “Parecia que meu avô tinha ido viajar, assim, sabe? Para mim, demorou muito para cair a ficha de que ele tinha realmente morrido. Eu não conseguia chorar.” A jovem conta que sua mãe entrou em estado de negação pelo falecimento do pai, só encontrando, numa carta de despedida, a alternativa para dizer adeus. A carta foi colocada junto ao corpo no sepultamento realizado com poucos familiares.

Como lidar com o luto prolongado 

Érika Arantes de Oliveira Cardoso – Foto: Reprodução/LEPPS/USP

A psicóloga Érika afirma que a falta da despedida de uma pessoa amada pode afetar negativamente a saúde mental do enlutado por complicar a “concretização psíquica da perda”. E o atual cenário de pandemia, segundo ela, é um fator de risco para o luto prolongado, devido às mortes rápidas e com muito sofrimento, além da impossibilidade de rituais funerários. 

Coordenadora do grupo de estudos Lutos e Terminalidades do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS) da FFCLRP, Érika diz que o luto mal elaborado é o não vivenciado, que pode levar ao adoecimento físico. Assim, afirma ser importante que cada pessoa viva a dor da perda em seu tempo, pois trata-se de um processo individual. 

Na atual circunstância, a psicóloga acredita que devem ser usadas todas as alternativas disponíveis. Cita o velório on-line como exemplo, mas, ainda assim, afirma ser importante refletir sobre o sentido da prática a ser realizada, uma vez que ela deve ser, “de alguma forma, acolhedora para quem vivencia, para não cair no vazio do ritual pelo ritual”.

Érika lembra ainda que, no atual contexto, o luto concreto pela morte de uma pessoa querida é precedido por perdas menores, mas, que ainda assim, desencadeiam lutos, como a mudança na rotina habitual, por exemplo. Assim, alerta para a atenção merecida de acontecimentos e cuidados em todas as perdas, por menores que sejam, já que, dessa atenção, depende a força necessária diante de uma grande perda.


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